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ESPADAS E ROSAS
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CAtXA POSTAL 899
yiltPHOKf. CENTlAi TH.
BIO DE JASTBT&i
OBRAS DE JÚLIO DANTAS
POESIA
Valada (1896) — 2.» edição.
Sonetos (1916) — 2. a edição.
PROSA
Outros tempos (1909) — 2.* edição.
Estática e dinâmica da fisionomia (1909) — 2.» edição.
Figuras de ontem e de hoje (1914) — 2.* edição.
Tatria Portuguesa (1914) — 3. 1 edição.
QAo ouvido de M.™e X (191 5) — 3.* edição.
O amor em Portugal no século AT/// (1915) — 2.* edição.
oMulheres (1916) — 2.» edição.
Eles e Elas (1918) — 2.» eáição.
Espadas e c P\psas (191 9).
TEATRO
O que morreu de amor (1899) — 4.* edição.
"Viriato Trágico (1900) — 2.* edição.
A Severa (1901) — 3.* edição.
Crucificados (1902) — 2.» edição.
Ceia dos Cardeais (1902) — 22/ edição.
D. Beltrão de Figueirôa (1902) — 3.* edição.
Paço de Veiros (1903) — 2.* edição.
Um serão nas Laranjeiras (1904) —3.» edição.
liei Lear (1906).
^Rosas de todo o ano (1907) — 7.» edição.
cMater Dolorosa (1908) — 4.» edição.
Santa Inquisição (1910) — 2. a edição.
Primeiro Beijo (191 1) — 3.* edição.
D. Ramon de Capichuela (1912) — 2. 1 edição.
O c Reposteiro Verde (1912) — 2." edição.
1023 ( 1914).
Soror çMariana (1915) — 2.» edição.
Carlota Joaquina (19 19).
A data indicada para cada obra c a da sua primeira edição.
JÚLIO DANTAS
Sócio efectivo da Academia das Sciências de Lisboa
Da Academia Brasileira
Espadas e Rosas
I. MILHAR
—><£&<■
LISBOA
PORTUGAL-RRASIL LIMITADA
SOCIEDADE EDITORA
58, RUA GARRETT, 6o
RIO DE JANEIRO
COMPANHIA EDITORA AMERICANA
LIVRARIA FRANCISCO ALVES
Reservados todos os direitos de reproduçfio:
em Portugal, conforme preceituam as dispo-
sições do Código Civil Portugue\ ; no Bra-
zil, nos termo» do convénio de 9 de setem-
bro de 1889 e lei n.* 3.577 d « '7 <* e Janeiro
de 191 2; nos paizes convencionados, em
harmonia com a Conferencia de Berna, a
que Portugal aderiu por decreto de 18 de
março de 1911.
Tip. do Anuário Comercial — Prsça dos Restauradores , 34 — Lisboa
AO EMINENTE JORNALISTA
DR. EDMUNDO BITTENCOURT
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in 2009 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/espadaserosasOOdant
A «BLAGUE» DE GIL POMPEIA
Fomos tomar o café para a sala de fumar.
O quinteto tocou o Manfredo, de Schumann.
A Viscondessa de ***, loira e friorenta, que
jantara com o regalo no colo, e cujas mãos
finas, quasi espirituais, lembravam certos
retratos de Reynolds, falou da guerra, do
horror dos torpedeamentos, da crueldade dos
raids sobre Londres, e perguntou, indigna-
da, se ainda haveria alguém que tivesse a
impassibilidade de nervos suficiente para
poder ouvir música alemã. O dr. Gil Pompeia,
que a olhava sorrindo, a fita do monóculo
entre os dedos, uma orquídea vermelha san-
grando na banda de seda da casaca, deixou-a
falar, admirou um instante, em silencio, os
caracóis fulvos, Buster Brown, que lhe es-
condiam a concha cor de rosa das orelhas, e
acabou por lhe dizer, com a maior naturali-
dade do mundo:
8 ESPADAS E ROSAS
— Mas, se a guerra continuo, minha se-
nhora, é porque v. ex. a quer.
-Eu?
— Quando digo a Viscondessa, quero dizer
todas as mulheres. Se a guerra ainda não
terminou, foi porque vv. ex. a8 não quizeram.
— Mas que força temos nós para a evitar?
— Vv. ex. as ? Teem a maior, a mais es-
pantosa, a mais formidável de todas as for-
ças, minha amiga!
-Qual?
— A força da sua fraqueza.
Olhámos todos, interrogativamente, a face
rosada, o sorriso paradoxal de Gil Pompeia.
Os criados vieram servir o café. Pela sala,
um Império-Groult moderno, verde-rã e
oiro, espalhou-se o fumo dos primeiros ci-
garros. Imperturbável, brincando distraida-
mente com um cinzeiro de Delft, o dr. Pom-
peia continuou:
— No dia em que todas as mulheres se
entenderem, a guerra terá tocado o seu fim.
O que é preciso para que as mulheres se
entendam ? Não serem mulheres, — dirá
v. ex. a . Mas v. ex. a há de permitir-me que a
não acompanhe no domínio da blague. A Eva
moderna precisa, antes de tudo, de estabele-
cer um acordo feminino internacional. Pre-
cisa de organizar a associação universal das
A «BLAGUE» DE GIL POMPEIA
mulheres. Precisa, numa palavra, — de sin-
dicalizar a beleza. Responder-me-há v. ex. a
que não ó fácil ; que não existe o espírito-
de-sexo como existe o espírito-de-classe; que
não é de esperar que dezenas de milhões de
mulheres estejam de acordo, quando duas
mulheres juntas nunca se entenderam; e,
tinalmente, dir-me-hâ v. ex. a , senhora Vis-
condessa, com o mais encantador dos seus
sorrisos, que à mulher nunca foi agradável
associar-se senão com o homem. Mas eu
contesto. Que foi, há três anos, o movimento
sufragista de Londres? Que foram os comí-
cios de Hyde Park, os arsenais de bombas
de Notting Hall, as sociedades secretas in-
glesas destinadas á propaganda do feminis-
mo pelo facto, o terror en dentelles que se
seguiu ao malogro da proposta Dickinson,
os acordos internacionais com as sufragistas
alemãs, com as sufragistas yankees, com as
feministas italianas da marquesa de Pelica-
no, — senão expressões de uma vasta orga-
nização, de um complot universal da mulher
contra o seu inimigo adorado — o homem?
Logo, nas mulheres existe espírito de soli-
dariedade, capacidade de associação, e, por-
tanto, o sindicato internacional da beleza
seria, neste momento, uma coisa relativa-
mente fácil de conseguir-se.
10 ESPADAS E ROSAS
— Mas, meu caro senhor, como poderia
isso contribuir para o fim da guerra? — per-
guntou, já interessada, a Viscondessa de • ••,
acariciando, com os dedos tinos de deusa, a
lontra macia do seu enorme regalo.
— Muito simplesmente, minha amiga. Uma
vez constituída, a união internacional dos
sindicatos femininos decretaria a boycottage
do homem e a greve geral do amor. Até que
o sexo forte se resolvesse a terminar de uma
vez para sempre a guerra no mundo, — o
amor, fonte, gérmen, origem, alma resplan-
decente da vida, desapareceria da face da
terra. Vénus cruzaria os braços e velaria o
seu corpo imortal. Nunca mais, no silêncio
doirado de Veneza, onde até as pedras
amam, se ouviria chilrear um beijo. Estan-
caria, em todos os seios fecundos de mulher,
o leite da ternura humana. Seria a esterili-
dade, o desespero, a desolação. Perante este
problema social, perante este problema de-
mográfico, perante este problema (perdòe-
me v. ex. a ) fisiológico, — que poderia fazer o
homem? Render-se. Capitular. E o ílagelo
da guerra acabaria. V. ex. a sorri-se. Consi-
dera isto um absurdo, uma fantasia de eru-
dito. E, entretanto, minha querida Viscon-
dessa, a greve geral do amor é uma idéa tão
velha, que tem vinte c cinco séculos de ida-
A «BLAGUE» DE GIL POMPEIA 11
de. Sabe quem primeiro a lançou? Aristopha-
nes. Leia v. ex. a esse adorável, esse colorido
fresco, que e a Lysistrata. Fatigadas dos
horrores da guerra do Peloponeso, as mu-
lheres de Atenas entenderam-se com as la-
cedemónias, invadiram a Acrópole, proclama-
ram um governo, decretaram que nem uma só
mulher grega, emquanto durasse a guerra, se
deixaria beijar ou possuir por um homem.
E a paz fez-se. O que são, no seu péplos
amarelo e nos seus socos doirados, as figu-
ras maravilhosas de Myrrhina, de Lampito,
de Calónice, pequenas Tanagras que o ódio
ao homem fundiu em bronze, — senão gre-
vistas do amor, precursoras do grande
movimento pan-feminista que amanhã, se
vv. ex. as todas quizessem, libertaria o mundo
e traria a paz ?
O dr. Gil Pompeia calou-se. As últimas
notas da ouoerture de Schumann esvaíram-
se no ar. Graciosamente, a Viscondessa re-
costou-se no seu Récamier, cruzou a perna,
e fazendo trepidar o pequeno pé nervoso
calçado de seda preta, disse, sorrindo:
— Quer saber a minha opinião, doutor?
— V. ex. a dirá.
— Antes continue a guerra. . .
ELOGIO DOS QUARENTA ANOS
Meu querido filho. — Deixei-te esta carta
com a recomendação de só a abrires no dia
em que fizesses quarenta anos. Não foi uma
fantasia minha este pedido. A esse tempo
já eu não pertenço, com certeza, ao número
dos vivos; e como, para um homem que
amou e viveu, não há outro dia mais triste
do que aquele em que para sempre se des-
pede das ilusões da juventude, quero que,
na hora em que chegarem os teus quarenta
anos, sintas junto de ti, senão já a minha
mão amiga, ao menos o meu conselho, o
meu pensamento e a minha alma. Todos nós,
quando passamos por este transe — e não
me falem na insensibilidade dos espíritos
superiores! — julgamos que, por que a mo-
cidade cerrou para nós a sua porta de oiro,
infalivelmente começam os gelos, as devas-
tações e as renúncias da velhice. Não, meu
14 ESPADAS R ROSAS
Jorge. E' aos quarenta anos que, em toda a
sua plenitude, em toda a sua força magnífi-
ca, em toda a sua pujante serenidade, a vida
principia. Será, talvez, a idade da decadência
da mulher ; mas é o período de esplendor do
homem. Não suponhas que a tua juventude
esgotou a taça de todos os prazeres, e que
já nada resta aos teus cabelos grisalhos se-
não as recordações saudosas, os afectos tran-
quilos e as alegrias patriarcais. O teu zénite
começa agora; e nem tu calculas, meu filho,
como, no equilíbrio perfeito de todas as nos-
sas faculdades, na posse exuberante de todo
o nosso instinto de viver, a existência nos
parece bela, as emoções nos parecem pro-
fundas, e todos nós respiramos, a plenos
pulmões, harmonia, plenitude, beleza, força !
A mocidade é uma corrida vertiginosa : co-
lhemos a flor da vida; mas, tão rápida é a
nossa carreira, que mal temos tempo para
lhe aspirar o perfume. Aos quarenta anos,
não ; aos quarenta anos tudo muda. Come-
çamos a parar no caminho para sentir o
deslumbramento de tudo quanto nos rodeia.
O bezoiro inquieto e doirado que esvoaçava
dentro de nós, sossega, emfim, para sorver
lentamente", voluptuosamente, o hálito dio-
nisíaco da terra em flor. Já não devoramos a
existência; respiràmo-la; saboreâmo-la. Os
ELOGIO DOS QUARENTA ANOS 15
quarenta anos são o nosso jardim de Epicu-
ro. A nossa sensibilidade, que julgávamos
adormecida e fatigada, parece despertar para
o gôso de sensações novas, de emoções des-
conhecidas, cuja intensidade nos desconcerta
e nos cria a ilusão de que alguma coisa de
virginal havia ainda dentro de nós. E' a ida-
de em que melhor se ama ; mas é também —
diz-to a longa experiência da minha vida de
jouisseur impenitente — a idade em que se 6
mais amado. Não sei explicar o efeito de se-
dução, de fascinação e de encanto que pro-
duzem sobre a mulher os primeiros cabelos
brancos do homem : sei apenas, meu filho,
que só quando principiaram a empoar-se-
me as fontes, só quando a primeira névoa
de prata caiu sobre a minha cabeça, é que
eu tive a noção perfeita, a consciência exacta
do poder, da força máscula de dominação
que o nosso sexo exerce sobre o espírito,
sobre os nervos, sobre a alma instável e fu-
gitiva da mulher. Emquanto fui novo, senti
à minha volta o desejo, a galanteria, a curio-
sidade, a sensualidade, a ternura, o amor:
só depois dos quarenta anos conheci a pai-
xão. O sentimento profundo que domina uma
alma e que decide de uma existência, o amor
que morre e que mata, a paixão que ilumina
e que transfigura, só os primeiros cabelos
16 ESPADAS E ROSAS
brancos teem o poder de os despertar, só os
quarenta anos os conhecem, só a maturidade
viril e reflexiva do homem pode inspirá-los
e senti-los. Chegou, meu Jorge, o momento
mais delicado de toda a tua vida de coração.
Estás na idade dos homens fatais e das pai-
xões fatais. Os teus cabelos grisalhos não
são uma despedida ; mas são uma advertên-
cia. Nada do que vai passar-se, daqui em
diante, no teu instinto e nos teus afectos, se
parecerá com a futilidade brilhante, com a
elegância voluptuosa das tuas aventuras da
mocidade. Nesta altura da vida, o amor deixa
de ser um sorriso ligeiro, para se tornar
um acontecimento grave. Aos quarenta, já
não se pode amar com o coração dos vinte
anos. Lembras-te da frase do marquês de
Lauzun, que eu tantas vezes te repeti quan-
do, como um irmão mais velho, te contava
as minhas extravagâncias de solteirão? Pois
bem, meu filho, — il faut aooir le coeur de son
âge. Hás-de ser rodeado, desejado, solicitado
por muitas mulheres; não terão conta as que
hão de cair em êxtase diante do teu perfil
de medalha, dos teus olhos de napolitano,
do prestígio da primeira neve que empoar a
tua bela cabeça: mas, meu rapaz, não dis-
perses prodigamente o teu coração amando
todas, como fizeste na juventude; escolhe
ELOGIO DOS QUARENTA ANOS 17
uma só, e ama então como se deve amar
aos quarenta anos, com uma ternura pro-
funda, com um sentimento cheio de digni-
dade, de respeito e de elevação. Quando se
entrou no verão esplêndido da vida, é este o
único caminho que pode conduzir à felici-
dade. Mas — dirás tu— por que fez meu pai,
dissipador magnífico dos prazeres e dos afe-
ctos da existência, precisamente o contrário
do que me recomenda a mim? Por que teu
avô esqueceu-se de me aconselhar no dia em
que eu fiz quarenta anos. Se Deus quizer,
Jorge, que tu sejas amanhã tão louco como
eu fui, dize ao teu filho — que importa uma
mentira piedosa? — dize-lhe ao menos que
eu também te não aconselhei a ti, mas copia
esta carta e deixa-lha como se fosse tua,
porque eu creio que não há alegria para o
coração de um pai, que valha a certeza da
felicidade de um filho. — Beija-te o teu, como
irmão, — José.
A CATEDRAL DE AMIENS
As granadas caem sobre a catedral de
Amiens.
A irmã mais nova de Reims, a mais
alta maravilha de equilíbrio e de estructu-
ra que produziu no século xm o gótico
normando, a formidável basílica picarda tra-
balhada no lioz doirado de Senlis e de Ver-
non, eriçada de torres, de flechas, de agu-
lhas, de lanternins, de sineiras, de coruchéus,
a catedral que foi o sonho do bispo Evrard
de Fouilloy, a alma resplandecente do mes-
tre laico Robert de Luzarches, cujo trifório
viu tremular a auriflama de S. Luís, em cuja
nave sagrada ressoaram os borzeguins de
ferro de Filipe-Augusto, a filha querida de
Bourges e de Mans, a mãe espiritual de
Troves, de Tours, de Beauvais, de Ruão, de
Colónia, expressão suprema do génio de um
povo, flor ogival por cujas gárgulas de pedra
32 ESPADAS E ROSAS
sete séculos choraram, — será amanhã, tal-
vez, como Reims, como Soissons, como Ar-
ras, um montão de escombros, um esqueleto
fumegante, uma ruína, um fantasma, uma
sombra. Revejo-a, evoco-a, sinto-a diante de
mim, vagamente envolta na névoa luminosa
da Picardia, com a sua torre incompleta, a
sua fachada aberta de fenestragens, os seus
três pórticos de arqui voltas povoadas de
evangelistas e de patriarcas, a sua rosácea
onde brincam reminiscências da Legenda
Doirada de Jacques de Voraigne, a sua ga-
leria dos Reis, os seus botaréus gigantescos,
as suas agulhas arrendadas de cogoilos, de
trílobos, de aipos, de trevos de pedra, perfu-
rando o ar, alando-se, erguendo-se em ges-
tos de bênção e de súplica, de profecia e de
glória. Não é, como era Reims, a «flor de
vida e de graça» saída das mãos de mestre
Orbais e de Jean le Loup: mas nenhuma ca-
tedral de França a èguala na plenitude, na
harmonia, no equilíbrio, na estabilidade, na
calma beleza das linhas. Perante o ritmo da
sua nave, severa e imensa como a de Bour-
ges; perante o seu coro, sumptuoso e orna-
mental como o de Mans; perante o seu tran-
sepko onde sorri o êxtase dos imaginários
ornamentistas do século xv ; perante a sua
ábside, onde se julgaria vêr passar ainda,
A CATEDRAL DE AMIENS 33
colorido de Ícones, o pontifical bizantino do
bispo Arnoult, — revivo, reconstituo, recom-
ponho, numa floresta de pálios, de cruzes,
de báculos, de flâmulas, de estandartes, ao
ruído das armas e das vozes, dos sinos e das
trombetas, um do maiores sonhos que tem
feito, em todos os tempos, a loucura da huma-
nidade cristã. Essa humanidade de há cinco
e sete séculos, bárbara e ingénua — vejo-a
bem! — espreita-nos ainda, convertida num
povo de pedra e de bronze, das fugas de to-
dos os pórticos, das aduelas de todos os ar-
cos, encastrada em pés-direitos e em arqui -
voltas, relevada em edículos e em tímpanos,
debruçando-se nos túmulos, abençoando nos
frontões, gesticulando na talha de oiro das
estalas capitulares, — surgindo de todos os
cantos, de todas as sombras, de toda a parte.
Dentro da velha catedral gótica o passado
não morreu: revive a cada hora, na popula-
ção legendária e imóvel das imagens, — bis-
pos e profetas, patriarcas e santos, apóstolos
e guerreiros, evangelistas e mártires, os ve-
lhos do Apocalipse e a teoria bíblica dos
Reis, todo o programa iconográfico dos teó-
logos da primeira Renascença, toda a graça
colorida das iluminuras do Psaltério e S.
Luís, a vida inteira a palpitar na pedra
que o escopro de Tomás de Cormont ani-
3
34 ESPADAS E ROSAS
mou para a eternidade, — e, sobre toda a
imaginaria dos milagres e das lendas, dos
mistérios e das catástrofes, pairando, esvoa-
çando como um sorriso, abrindo como uma
flor-de-liz na porta do transepto norte, a Vir-
gem-Doirada de Amiens, a «soubrette picar-
de» de Ruskin, a Virgem-Colombina, a mais
risonha e graciosa figura de Mulher de todas
as catedrais do mundo. Essa multidão de
imagens, que tem o poder de revivescência
dos espectros ; que inunda pórticos e gale-
rias, baptistérios e vitrais, frisos e túmulos,
púlpitos e capelas; que imprime a toda a
arquitectura uma expressão viva e humana;
que ri e chora nos brutescos e nos capitéis,
nos modilhões e nas gárgulas, no retrato
de João Wuilz e na absidíola dos Macabeus,
— todo esse povo de pedra, seis, sete vezes
centenário, eu vejo, eu sinto que se levanta
agora, que se ergue perante o ultraje das
granadas alemãs, que esbraceja, que ulula,
que sacode os membros convulsos numa im-
precação sagrada de ódio, numa súplica for-
midável de justiça, como se os seus braços
de estátua pudessem cobrir, defender, pro-
teger uma das maiores maravilhas da alma
gótica, um dos mais surpreendentes delírios
do génio cristão. E emquanto os coruchéus
abatem, e se fundem os telhados de chumbo,
A CATEDRAL DE AMIENS 35
e estalam os arcos botantes, e se estilharam
vidros de rosácea e arestas de pedra; em-
quanto o fumo das explosões enegrece o ar;
emquanto o incêndio alastra, a catedral rúe,
e, de polo a polo, os clarões de uma fornalha
ciclópica enchem a noite, — 6 a multidão das
estátuas do Amiens, é a alma sagrada do
Passado que eu vejo, que eu ouço ainda, tre-
mendo, uivando, soluçando, gritando em no-
me da Humanidade transida, em nome da
Justiça morta, em nome da Beleza mutilada:
— Maldição ! Maldição !
UMA MULIIEli FATAL
— Vês aquela mulher?
Olhei na direcção indicada pelo meu ami-
go. Um pouco adiante de nós, assentada à
mesa, na sala de jantar do Internacional,
uma mulher vestida de preto, sòsinha, almo-
çava, com um livro aberto na sua frente.
— Vejo. Quem é?
meu amigo disse-me, em voz baixa,
um nome. Esperou que o criado metesse
uma garrafa de Salreu na larga geleira de
cristofie, e acrescentou, numa expressão de
dolorosa concentração:
— Foi por causa dela que o Chico Eça se
matou.
O pobre Chico Eça! Eu tinha ouvido falar,
como toda a gente, nesse sombrio drama de
amor que acabara com uma bala de revól-
ver — qualquer coisa de semelhante à paixão
de Maurice de Guérin por M. me de Maistre
38 ESPADAS E ROSAS
— mas não conhecia, nem mesmo de nome,
a mulher fatal que levara o pobre rapaz ao
suicídio. Sabia apenas que se tratava de uma
vaga mulher casada, «froide à vous faire
tousser», como diria Barbey d'Aurevilly, e
cuja aventura com o elegante Eça não fora
a primeira nem tinha sido a última na sua
vida de sensações e de dissipação. Era uma
criatura de 30 a 35 anos, vulgar, magra, de
uma elegância angulosa, de uma distinção
seca, de uma palidez impressionante. Pro-
curei, debalde, no seu perfil duro, semita,
quási recto, na sombra de melancolia das
suas pálpebras descidas, na sua pele tri-
gueira, um pouco árida, batida de reflexos
metálicos, nos seus braços nús, viris, cujos
cotovelos perfurantes pareciam cravar-se na
mesa, qualquer encanto feminino, qualquer
indefinível expressão de beleza ou de graça,
capaz de prender pela simpatia, de perturbar
pelo mistério, de atrair pela sensualidade.
Não percebi, confesso, que força de sedução
semelhante criatura poderia exercer sobre
um homem, até ao ponto de o levar ao úl-
timo dos desesperos. Não possuía — disse-
me o meu amigo — qualidades excepcionais
de inteligência, e, muito menos, de coração;
já não havia nela essa ressumante e diabó-
lica frescura da mocidade, que, a-pesar da
UMA MULHER FATAL 39
observarão de Pinarei — ala femme ne deoient
vraiment femme qu'après son trois eme en-
fant» — é ainda a mais perigosa e a mais
inquietante de todas as belezas; a sua pró-
pria elegância, que se adivinhava no pé cal-
çado de camurça preta, no artelho fino, es-
belto e forte comprimido na malha de seda
da meia, era uma elegância máscula, des-
manchada, rectilínia, sem flexibilidade, sem
feminilidade. Analisei-lhe, uma a uma, as
feições; segui-lhe, curioso, a linha dos ges-
tos; procurei surpreender os subtis, os des-
conhecidos encantos que tornavam aquela
mulher tão funesta, tão desejada, tão ado-
rada. Talvez — pensei eu — os olhos fossem
belos. Esperei que ela os erguesse da bro-
chura que estava lendo, e que me pareceu,
pela mancha da capa, o último livro de
Bourget. Há olhos que, só por si, valem
uma fisionomia, que a iluminam, que a expli-
cam, que a revelam — sobre tudo os pretos
— e cujo clarão, como certas luzes doiradas
de atelier, adoça todos os contornos, amacia
todas as linhas, envolve as expressões mais
duras numa vaga voluptuosidade de mistério.
A insistência do meu olhar acabou por atrair
o dela. Era estrábica. E' bem certo que o
amor nasce de quási nada e morre de quási
tudo; mas aqueles olhos piscos, castanhos,
40 ESPADAS E ROSAS
pequenos e vulgares, de um tom fulvo de
tabaco e de um sensível estrabismo conver-
gente, não se me afiguraram capazes, nem
de traduzir sentimentos profundos, nem de
despertar grandes paixões. Lembrei-me, ao
vê-la voltar as folhas do livro, do poder de
sedução, da intensa espiritualidade que se
exala de certas mãos, e que d'Annunzio pro-
curou explicar e descrever no Fuoco. Mas
— eu vi-as bem — nas mãos dessa mulher,
largas, empastadas, inexpressivas, mãos de
artrítica, grossas de articulações e espessas
de modelação, não havia coisa alguma que
recordasse, sequer, a fisionomia inteligente,
translúcida, nervosa, voluptuosa, inquieta,
das «mãos dannunzianas». Quando percebi
que ela bebia o último gole de chá e ia le-
vantar-se da mesa, supuz encontrar na har-
monia, na ondulação, na nobreza, na opulên-
cia da sua figura a justificação do interesse
amoroso e sensual que parecia envolvê-la
como uma atmosfera nefasta. Tinha um cor-
po chato, longo, insexuado, sem peito, sem
ancas, não dessa diáfana imaterialidade das
idealizações pré-rafaelitas, que Ruskin exal-
tou, e que é beleza c ó graça ainda, mas de
uma magreza gimnandra, forte, desgraciosa,
movendo-se, sem leveza e sem ritmo, em
largas passadas de homem.
UMA MULHER FATAL 41
— Mas onde está, afinal, o encanto desta
cria lura?
— Vais sabê-lo, — disse o meu amigo,
levantando-se para a cumprimentar à pas-
sagem.
Trocaram as primeiras palavras banais.
Uma voz quente, musical, pastosa, pertur-
badora, voz divina de oréada transviada, voz
que parecia um soluço vibrando dentro de
uma campânula de oiro, voz de presságio e
de paixão, cantou, chorou, tremeu nos meus
ouvidos. Era a voz dela. Estava decifrado o
enigma. Senti, nesse momento, com a evi-
dência das coisas irremediáveis, que aquela
mulher me endoideceria se murmurasse, de-
bruçada sobre mim, uma palavra de amor.
Tive uma impressão de vertigem quando ela
passou ao meu lado. Hoje, creio firmemente
que as mulheres fatais, as mulheres que
perdem e que matam, não são as mais belas,
e que não há nada na mulher mais perigoso,
mais sensual, mais infernal, mais divino, do
que a voz.
ILHA DOS AMORES
Portugal tem hoje notáveis pintores. Mas
não existe bem caracterizada, no momento
actual, uma pintura portuguesa. Lembro-me
ainda das impressões produzidas pelos nossos
grandes mestres no espírito de uma senhora
francesa que, em 1907 ou 1908, me concedeu
a honra de visitar comigo a exposição do pa-
lácio de S. Francisco. Perante um retrato da
primeira maneira de Columbano, a encanta-
dora M. me •** não pôde conter uma expres-
são de assombro : — «.Que c'est beau ! Un Ve-
lasquez!» Parou em seguida diante de um qua-
dro de Salgado ou de Carlos Reis — não me
recordo bem — mancha de um impressionis-
mo, de um plenarismo ofuscante, e observou,
num sorriso de subtil inteligência: — «O/z
dirait un Besnard, ríest-ce pas ?» Cada ma-
nifestação sincera da sua admiração expres-
sava-se involuntariamente através de analo-
44 ESPADAS E ROSAS
gias, de semelhanças, de sugestões de escola
e de processo (o naturalismo comovido de
Breton, o academismo de Bougucreau, as
perspectivas convencionais de Zuloaga, os
tons cinzento-p rateados de Whistler), acen-
tuando em quem a ouvia a convicção — que
é já, de resto, a de muita gente — de que à
pintura portuguesa contemporânea, magní-
fica de seiva, de opulência e de vigor, falta,
por emquanto, uma qualidade : o carácter na-
cional. De repente, porém, a gentilíssima se-
nhora parou, fixou os olhos num quadro,
toda a sua face se abriu num riso de surpresa
e de júbilo, e disse-me, batendo as palmas
como uma criança: — «Voilà! Voilà ce qui
est bien portugais /» Eram os Bêbados, de
Malhoa.
Com efeito, Malhoa é hoje, como o foi Silva
Porto, uma gloriosa excepção na pintura por-
tuguesa. O seu ardente, o seu indestructível
lusitanismo — não apenas nos motivos, mas
no sentimento e nos processos— conferiu-
lhe um logar aparte entre os mestres pinto-
res do seu país e do seu tempo. Não há ma-
neira de o confundir, porque a pintura de
Malhoa não se parece com nenhuma outra.
Ponham um quadro deste naturalista admi-
rável, deste assombroso lírico da paisagem,
deste intérprete luminoso e sadio da alma e
ILHA DOS AMORES 45
<los costumes do nosso povo, entre centenas,
milhares de quadros de todas as escolas, de
todas as proveniências, de todos os países :
èle permanecerei, na sua luz, na sua natu-
reza, na sua etnologia, no seu pitoresco, na
sua emoção, — inconfundível, saboroso, cara-
cterístico, português. Não admira que assim
seja — dir-se-há — dada a predilecção de Ma-
lhoa pelos motivos de carácter nacional. De
ordinário, é certo, o grande mestre inspira
os seus quadros em motivos populares (Volta
da Romaria, Oleiros, o Viático, Chegada do
Zé Pereira, os Bêbados, Azeite nooo, a Pro-
cissão, o Fado) ou na geórgica estremenha
rutilante de sol (Cuidados de amor, Cócegas,
o Remédio, a Varanda dos Rouxinóis), onde
as suas faculdades de observador profundo
e o seu vigoroso realismo idílico surpreen-
dem, como diria Millet, a «alma comovida e
fraterna dos humildes» entre as lindadas vi-
çosas, os vinhedos doirados, os risonhos al-
pendres e as lareiras patriarcais de Figueiró
dos Vinhos. Mas não se suponha que o vee-
mente carácter da sua pintura se perde
quando Malhoa deixa de pintar procissões
ou romarias ribatejanas. Seja qual fòr o gé-
nero ou o assunto escolhido, o forte lusita-
nismo da sua maneira, do seu sentimento,
da sua individualidade — que não exclúe o
46 RSPADÀ8 li ROSAS
poder de generalização das suas vastas sín-
teses de tipos humanos — mantem-se com
uma tal energia, com um tal vigor, com uma
tão soberba afirmação de raça, que, mesmo
antes de nos dizermos diante de um quadro
de Malhoa: — «Como isto é belo!» — .dizemos,
com o entusiasmo da francesa que me acom-
panhava em 1908: — «Como isto é portu-
guês !»
Estou a escrever estas palavras c a olhar
o maravilhoso quadro que aqui tenho, diante
de mim, sobre o fogão pombalino do meu ga-
binete de trabalho. E' um estudo, a óleo,
para a sua grande composição — a Ilha dos
Amores. Num recanto verde e luminoso de
floresta, entre os pinheiros de Cybele c os
alamos de Alcides, sobre a ínsua doirada que
a deusa Cypris fez surgir do mar para a ofe-
recer, como uma jóia, á sensualidade faminta
dos portugueses, uma névoa rósea e palpi-
tante de ninfas — nereidas, dríadas, oréadas,
napeias coleantes, occânides melodiosas —
passa, freme, ondula, adivinha-se ao longe
num estremecimento pagão de carne mia, —
emquanto no primeiro plano, aos pés do mais
amoroso, do mais eloquente, do mais petrar-
quiano dos soldados da armada da índia, o
moço Leonardo — «.tra la spiga e la man qual
muro èmessof» — cai húmida, ofegante, nua,
ILHA KOS AMORES 47
risonha, a fugitiva náiade Efira, como uma
graciosa c rosada capréade que no meio
de uma dança sicínica de sátiros, de pans, de
silvanos, de faunos, escorregasse e caísse,
rebolando, na relva cheia de sol. O eminente
pintor português poderia, como outros ilus-
tradores dos Lusíadas, ter-se inspirado nas
Baigneuses de Boucher, ou, em geral, nos
nús galantes dos pintores franceses do século
xviii. E, entretanto, como Portugal inteiro,
como toda a raça lusitana vive, estua, res-
plandece naquela figura violenta de soldado,
naqueles olhos acesos de desejo e de espanto,
naquela boca que beija e que sorve, na garra
bárbara daquela mão robusta que se crispa,
trémula de volúpia, sobre uma anca de mu-
lher ! Neste admirável estudo de ar livre —
que a isso, afinal, se resume a Ilha dos Amo-
res — tudo é português: a luz, a natureza, a
atmosfera, a paisagem, o trigueiro macio
das carnações, o sentimento edénico da com-
posição, e, acima de tudo, a emoção que pal-
pita nesse beijo simultaneamente lírico e
brutal, sagrado e feroz, torpe e divino, ex-
pressão do maior prémio que algum dia um
coração português pôde ambicionar para as
suas façanhas ! Falam-me aí no Beijo de
Rodin? Mas o Beijo de Rodin é a fecundi-
dade — e o Beijo de Malhoa é a glória !
O PARADOXO DO DH. MARCONDES
Visitei ontem o sábio e singularíssimo
Dr. Marcondes. Encontrei-o no seu gabinete
de trabalho, a barbicha branca e rala escor-
rendo sobre a quinzena de veludo preto, uma
maravilhosa carnação rosada, como a de cer-
tos retratos de Franz Hals, espelhando à
luz. Tinha na mão um cràneo epi-paleolítico
achado nos kjoekkenmoeddinyer do vale do
Tejo, e estudava-o, de compasso em punho-
Conversámos de tudo — e, por conseguinte,
da guerra. Quando lhe perguntei a sua opi-
nião acerca do conflito mundial, o ilustre Dr.
Marcondes pousou sobre a mesa o precioso
dolicoide, fixou em mim os seus pequeninos
olhos frios, de um verde de água profunda,
e disse-me, textualmente:
— Sabe você o que é a guerra? E' uma
doença da civilização. E', caracterizadamente,
uma doença da civilização metalúrgica. Você
4
50 ESPADAS E ROSAS
não ouve Lloyd Georgc, Wilson, Clemen-
ceau, idealistas hipercivilizados, admiráveis
mobilizadores de palavras sonoras, afirma-
rem nòs seus discursos que a América, a
França, a Inglaterra se batem para que a
civilização avance e nunca mais a guerra
seja possível no mundo? Se assim fosse,
meu amigo, estávamos a bater-nos por duas
aspirações contraditórias. Quanto mais a ci-
vilização avançar,— tanto mais frequente, mais
vasta, mais gigantesca, mais monstruosa se
tornará a guerra, porque a civilização nunca
conduziu, nem conduzirá, à felicidade, à har-
monia, à ortobiose humana. A guerra só
terminará no dia em que a civilização re-
gressar às formas paleolíticas. Estou firme-
mente convencido de que a humanidade não
volta a conhecer a paz, sem que uma con-
vulsão geológica subverta o mundo, e um
novo troglodita nasça, hirsuto, pacífico, co-
mendo feras e lascando pedra. Duvida vocèV
Vou provar-lho, à face da pré-história. Tome
nota das minhas afirmações. O homem pa-
leolítico e o homem neolítico — digo eu —
não conheceram a guerra. A idéa da guerra,
como nós a compreendemos, nasceu com o
homem mórgio, apareceu com a primeira
espada de bronze, — é uma criação essencial-
mente metalúrgica, uma obra funesta do me-
O PARADOXO DO DR. MARCONDES 51
tal. Demonstrada a primeira parte, está feita,
ipso facto, a demonstrarão da segunda. Ora
ouça o meu caro colega. Se a guerra, como
instituição, como organização, como espírito
— o pólemos — tivesse existido na idade da
pedra, os ossuários neolíticos revestiriam o
aspecto de vastos ossuários de campo de ba-
talha, e não seriam apenas, como realmente
são os que se conhecem, simples túmulos
de famílias ou sepulturas de tríbus, bem ca-
racterizadas pela descarnização dos cadáve-
res e pela presença de esqueletos de crianças
e de mulheres. Além disso, a terem-se dado
colisões armadas entre organizações guer-
reiras de povos, os vestígios da luta deviam
aparecer nas ossadas do homem pré-histórico,
companheiro do rinoceronte e do mamute ; e,
como vocô sabe, as feridas neolíticas, sim-
ples acidentes de caça (flechas de sílex no
cúbito, no fémur) são extremamente raras.
Há quem afirme que entre as populações
lacustres existiu a guerra: contesto. Se
tivesse existido a guerra, existiria a pro-
fissão de guerreiro; e, se existisse a pro-
fissão de guerreiro, muitas sepulturas neo-
líticas por inumação acusariam — o que
não se verifica — a presença de armas e de
insígnias bélicas. Perguntar-me-há você o
que são as facas paleolíticas de Abbéville e
52 ESPADAS E ROSAS
de Sauton Downham, as lanças de sílex las-
cado de Reculver e de Saint-Acheul, os ma-
chados, os celtas de pedra polida provenien-
tes das aluviões, dos dólrnens, dos hipogeus
do Somine, de Locmariaker, de Mooseedorf,
— o que são essas magníficas peças, cobertas
da baba doirada de dez mil anos, senão ar-
mas, verdadeiras armas de agressão, e, por-
tanto, de guerra? Engano. As armas lasca-
das dos homens das cavernas e os punhais
de sílex polido dos palafitas não são instru-
mentos guerreiros; são utensílios; são, quan-
do muito, como as pontas de flecha de sílex,
de diorite, de basalto (lá estão, a prová-lo,
as vértebras perfuradas de rena do museu
Saint-Germain) simples armas de caça. Po-
diam eventualmente transformar-se — como
se transforma uma pedra vulgar — em ins-
trumentos de agressão; mas não eram, nun-
ca foram armas de guerra ; nem o espírito,
nem a instituição da guerra existiram no
neolítico, emquanto êle não conheceu o oiro
— o primeiro esplendor; o cobre — a primeira
riqueza; o bronze — a primeira espada. Resta
um argumento: a existência de certas mu-
ralhas ciclópicas do tempo da pedra polida
— por exemplo, a de Santo Odílio, nos Vos-
gos. Mas esses recintos murados, esses me-
galitos de aspecto defensivo eram simples
O PARADOXO DO DR. MARCONDES 53
monumentos de natureza religiosa, como os
Cromlecks da Bretanha e o famoso Stone-
henge da Inglaterra, em cujas imediações
não se encontraram armas. Por conseguinte,
meu amigo, é evidente que os homens neo-
líticos não conheceram a guerra. A guerra
foi revelada á humanidade pelos metais.
Nasceu com eles. Foi o metal que ensinou
as sociedades humanas a organizarem-se —
para devastar e para matar. O espírito de
conquista, o génio de dominação, o culto
nietzschiano da força são obra exclusiva da
civilização metalúrgica na sua progressão
crescente de poder destruidor — cobre, bron-
ze, ferro, aço. Desde a espada das forjas
escandinavas, batida em bronze sagrado pelos
homens primitivos, até ao gládio grego dos
heróis do ciclo troiano; desde a enémide de
Aquiles, refulgente de oiro, até ao escudo
de ferro dos homens da primeira Cruzada;
desde a armadura de Carlos v até aos mos-
quetes de Fontenoy; da granada à metralha-
dora, do canhão ao drecn.lnought, do avião ao
tank, à medida que a civilização avançava,
que os metais triunfavam na maravilhosa
ascenção que vai das forjas bárbaras até às
aciarias e aos altos-fornos de Essen e de
Rheinhausen, — a guerra tornou-se cada voz
mais terrível, mais mortífera, mais hedion-
54 ESPADAS E ROSAS
da, mais desumana. Já não é um duelo — é
um massacre; já não é um torneio — é uma
carnificina; já não é um combate — é uma
devastação. Aqueles que se batem para que
a guerra não volle a ser possível no mundo,
aqueles que se batem sinceramente por um
ideal de paz,— batem-se, não para que a civili-
zarão avance, mas para que a civilização recue.
Para gosar a paz de Diceópolis, uma paz dio-
nisíaca, uma paz fecunda, uma paz doirada e
criadora no seio da natureza e das leras,
para viver, finalmente, tranquilo e feliz, o
homem tem de fazer tábua-raza de toda a
civilização, de demolir, de subverter cinco
mil anos de delírio metalúrgico — para voltar
a lascar pedra, pacífico, felpudo, risonho,
como os hominídios neandertaloides, empo-
leirado nos galhos de alguma árvore primi-
tiva e frondosa. E quem nos diz a nós,
meu caro colega, que não estamos já no
princípio dessa formidável obra de demo-
li»; ão?
O Dr. Marcondes teve um gesto profético
c calou-se. O sol brincava na sua calva re-
luzente. Quando, á despedida, lhe apertei as
mãos, fiquei perfeitamente convencido de
que ainda há no mundo alguma coisa mais
terrível do que um canhão que dispara: 6
um sábio que raciocina.
A MULHER E O CAQ
Mícer Jacob Pinheiro, mercador na Haya e
descendenle de judeus portugueses, casara
em Ipres com uma das mais belas mulheres
da Flandres, e, vinte dias andados depois do
casamento, numa pesada estufa de viagem,
seguido de duas liteiras com as criadas e de
duas recuas de azêmolas carregadas de ta-
peçarias e de baixela de prata, metera-se a
tíaminho, com a mulher e um grande galgo'
de estimação, de regresso à sua casa da Ho-
landa. Levavam já dois dias de jornada quan-
do chegaram á estalagem do Galo, uma das
mais célebres hostarias flamengas do prin-
cípio do século xvn, a cuja porta, sonolentos,
abroxados de forte ferraria, cabeceando so-
lenemente nos correões, esperavam as es-
tufas e as calejas de uns fidalgos espanhóis.
Mícer Jacob desceu, bateu as palmas, e pe-
56 ESPADAS li ROSAS
diu pousada e mudas para as liteiras. Mas
uns titereiros manchegos faziam bailar uns
bonecos no pátio ; em volta do improvisado
teatro, o povo formigava, gritava, uivava de
júbilo; e o mercador, se quiz ser atendido
pelos eguariços, teve de entrar com o sota-
cocheiro na estalagem e de pagar adiantadas,
por dois dobrões de oiro, as mudas e a hos-
pedagem daquela noite. Quando, dali a pouco,
voltou a buscar a mulber, viu junto do es-
tribo, cortejando-a, um fidalgo moço que pa-
recia descido de um quadro de Pantoja de
la Cruz e que, mal o sentiu aproximar-se,
se afastou olhando-o, de sombreiro na cabe-
ça, com toda a insolência do orgulho espa-
nhol.
— Quem é aquele homem ? — perguntou,
perturbado, Mícer Jacob.
A encantadora flamenga sorriu, ajustou
o seu grande mantéu verde, compôs a crés-»
pina de oiro de Londres, e descendo do co-
che, aconchegada ao braço do marido, mur-
murou numa voz que era uma carícia :
— Sei lá, meu amor!
Jacob Pinheiro, com a mulher e com 77-
thon, o grande galgo branco que o acom-
panhava, recolheu-se nos melhores aposen-
tos da hostaria, mandou vir a ceia, correu
os ferrolhos, c não saiu mais, até que, no
A MULHER E O CÃO 57
dia seguinte, o sota-cocheiro foi dizer-lhe
que era tempo de seguir jornada.
— Tudo pronto ?
— Tudo pronto, Mfcer Jacob.
Levavam já uma hora de caminho, quan-
do o mercador, na volta de uma estrada,
percebeu que uma das estufas dos fidal-
gos espanhóis o vinha seguindo de perto.
Apreensivo ainda com o que se passara na
estalagem, e lembrando-se das palavras do
velho Laurent Joubert, que lera dias antes
— «on est plus t rompe en femmes et en che-
vaux que en tout autre animah — , tornou a
perguntar à mulher se o impertinente cas-
telhano que subira, para a cortejar, à estri-
beira do coche, era, porventura, seu conhe-
cido ou seu parente.
— Nunca o vi.
— Então porque lhe sorriste, se o não co-
nhecias?
— E' costume, em Flandres, sorrir a quem
nos corteja.
— E' um mau costume, que tu has de per-
der na Holanda.
— Deveras, meu amor ?
Jacob Pinheiro olhou a mulher, perguntou
a si mesmo o que haveria de cândido ou de
hediondo, de angélico ou de infernal no sor-
riso daquela criatura, acariciou Tithon ador-
58 ESPADAS E ROSAS
mecido aos seus pés, e só despertou dos
sombrios pensamentos em que se absorvera,
quando o coche do fidalgo espanhol, carre-
gado do escudo «emanchado de três piexas
de gueles y de oro» dos Teles Giron, passan-
do de escantilhão ao lado da estufa do mer-
cador, lhe ganhou a dianteira e se atra-
vessou na estrada a cortar-lhe o caminho.
O cocheiro, cujo vaqueiro vermelho chame-
java ao sol, gritou que se arredassem. O fi-
dalgo desceu do coche, enfiou a espada no
talabarte, levantou a cabeça sobre o enorme
festo cnrocado, ferrou os punhos na cintura,
e com a mesma expressão de provocador
orgulho com que na véspera se acercara da
mulher de Mícer Jacob, convidou o mercador
a apear-se também.
— Que pretende de mim, vossa mercê?
— A mulher que o acompanha!
— Pertenee-me de corpo e de alma. E'
minha mulher.
— Passará a ser minha.
— Quem o ordena?
— O meu desejo.
— Não o será, emquanto nos meus col-
dres houver pistolas!
O mercador travava já do sclote do sota-
cocheiro para desafivelar-lhe os coldres,
quando o castelhano o deteve num gesto :
A MULHBR R O CÃO 50
— E se ela me preferir a mim c quizer
de sua vontade seguir-me?
— E' uma mulher fiel. Não me trocará
pelo primeiro desconhecido!
— Experimentemos.
— Pois experimentemos !
Acercaram-se ambos da estufa de via-
gem, de onde a subtil flamenga, como um
Van Orley diáfano e doirado, debruçava já,
sorrindo sempro, a sua bela cabeça de deusa.
Jacob Pinheiro fitou-a, cruzou os braços e
disse-lhe:
— Mulher, vai ou fica, como te ditar o
coração.
As criadas, aflitas, espeitoravam-se das
liteiras. Os azeméis e os liteireiros olhavam,
mudos de pasmo. Na vaga neblina cinzenta
do céu da Flandres, os dois coches, oscilan-
do nos correôes esticados, pareciam arfar,
arquejar numa expressão quási humana. Em
silêncio, a mulher de Mícer Jacob compôs o
manto, sorriu, desceu, — e atirou-se para os
braços do desconhecido. Pelos olhos do ju-
deu passou uma onda de sangue. Mas, pala-
vra de mercador não voltava atrás. Conteve-
se, dominou-se, devorou a afronta, e, sereno
até à generosidade, ordenou que as alfaias
da bagagem c as liteiras das criadas seguis-
sem aquela que havia sido sua ama e se-
60 ESPADAS K ROSAS
nhora. Quando já a comitiva se punha em
marcha, um estribeiro negro do fidalgo es-
panhol veio falar ainda a Mícer Jacob. A
caprichosa flamenga desejava que o marido
lhe mandasse o galgo, que ela adorava e de
que não queria separar-se.
— O que fiz com a mulher, fá-lo-hei com
o cão, — disse, tranquilamente, Jacob Pi-
nheiro.
— Vossa mercê entrega o galgo a Sua
Ilustríssima?
— Dou ao cão a liberdade de escolher o
dono que lhe aprouver.
Quando o negro lhes levou a resposta,
o fidalgo e a flamenga, debruçados do coche,
chamaram de longe o animal:
— Tithon! Tithon!
O cão, porem, mais fiel que a mulher, fi-
cou ao pó do dono, a lamber-lhe as mãos.
OS «VIGENTES»
Quem viu Coimbra há vinle anos, já hoje
a não conhece. Desapareceu o espírito uni-
versitário. Aboliram-se os ceremoniais pom-
balinos. Sepultaram-se as tradições acadé-
micas. As charamelas emudeceram. Calou-se
a «cabra». A fisionomia da cidade mudou. E
o que é mais curioso, é que a própria trica-
na, a tricana de pele doirada, de buço ligeiro
e de chinela nervosa, a tricaninha que era o
sorriso, o coração, a alma da velha cidade
do luar e da saudade, dos archeiros e dos
doutores, mudou também e parece outra,
com as suas maneiras de Lisboa, o seu chaile
de merino, a sua meia de seda, o seu sapa-
tinho francês de camurça, e um certo ar
grave, tímido, futrica, Sainte-Nitouche, que
não deixa de ter encantos, mas que repre-
senta a subversão, não apenas do tipo tra-
dicional, mas do espírito vivaz da rapariga
62 ESPADAS E ROSAS
coimbrã. A tricana foi uma obra secular e
amorosa do estudante; e a Coimbra de hoje,
a Coimbra nova, a Coimbra de képi e de cha-
péu-de-còco, burgueza, utilitária, turística,
pé-de-boi, será de toda a gente, do militar,
do industrial, do lojista, do forasteiro; — do
estudante 6 que já não é. Mas então— pergun-
tar-se-há — já nada resta de característico na
etnologia da tricana actual? Nada a distin-
gue, por exemplo, da costureira de Lisboa,
da rapariga das fábricas do Porto, desses ti-
pos de tão penetrante encanto popular que
enchem, com os seus olhos pretos e os seus
chailes de lã, os quatro cantos viçosos das
pequenas cidades portuguesas? Não seria
justo afirmá-lo. A rapariga de Coimbra mu-
dou; é já inteiramente diferente do que era
há quinze e há vinte anos; mas a-pesar da
sua decadência, do seu futriquismo, da sua
descaracterização, ainda constitúe um tipo
aparte. Ficou-lhe qualquer coisa de ances-
tral, de inapagável, de hereditário no gesto
de traçar o chaile, no movimento de atar o
lenço; a-pesar dos seus sapatos de salto, ainda
se lhe adivinha, no ritmo do andar, a ousadia
airosa da chinela que lhe tremeu na ponta
do pé; vou jurar que a sua vulgaríssima saia
de costureira ondula ainda com a mesma
graça musical com que, em pleno século xvii,
OS «VICENTES» 03
descendo ao sol a Couraça de Lisboa, sara-
coteava a sua vasquinha curta de serafina
encarnada; e se a chinela e a meia branca
desapareceram, se as filigranas de oiro já
não lhe brincam nas orelhas, se se perdeu o
embiocado do lenço e o avental de ponta que
seduziram João Penha, — alguma coisa existe,
alguma coisa ficou, um pormenor vivo, uma
nota curiosa, um pequeno traço especial
que, ainda hoje, nos faz conhecer à légua as
raparigas de Coimbra: o «vicente».
O que é o «vicente» das tricanas, a que li-
gou o seu nome um encantador rapaz da
aristocracia portuguesa e da boémia coim-
brã de há quinze anos? Nada mais simples.
Uma fita de veludo preto, da largura de um
dedo, que lhes afoga o pescoço. O enfeite
mais singelo e mais despretencioso do mun-
do. E, entretanto, a graça, a expressão, a
viveza, o sugestivo encanto que essa simples
fita, passada sob a barba e presa atrás às
pontas do lenço de pongé preto que lhes en-
volve os cabelos, empresta à fisionomia da
mondégide pagã que é a mulher de Coim-
bra! Para compreender o poder de sedução
do avicente» é preciso ter visto, algum dia,
a carnação luminosa e inconfundível da tri-
cana. Não sei se deve atribuir- se ao sol, à
luz macia das margens do Mondego, ou ao
64 ESPADAS E ROSAS
próprio grão da sua pele, doirada como o
bago do trigo maduro, esse tom mate, essa
palidez quente e metálica peculiar às rapa-
rigas da velha cidade de D. Diniz. Sei ape-
nas que, sem a polpa, transsudante de luz,
daquelas faces e daquele pescoço, sem uma
carnação com essa vaga e opulenta tonali-
dade de oiro baço, sem aquele moreno lu-
minoso que lembra a patine de certos mar-
fins religiosos, o traço negro do «vicente»
de veludo não teria a décima parte do valor
expressivo e da picante graça que fizeram a
sua fortuna. Toda a gente o pode pôr; só à
tricana é que fica bem. Joga-lhe, à maravi-
lha, com o negro dos olhos e dos cabelos;
comprime-lhe, afaga-lhe, como uma carícia,
as modelações e os empastamentos da gar-
ganta; estilisa-a, adelgaça-a; parece que lhe
abre o sorriso, que lhe atenua a sombra vio-
leta das olheiras, que lhe faz scintilar a pele
como grãos de mica ao sol; dir-se-ía (tanto a
tricana é a obra carinhosa de muitas gera-
ções de escolares!) que cada uma delas traz
ainda ao pescoço, como uma relíquia, o
pequeno farrapo negro de uma capa de estu-
dante. Para as raparigas de Coimbra, o «vi-
cente» não é, apenas, a moda que passa; é a
jóia que fica. — «São as nossas pérolas», —
dizia-me uma, embrulhada no seu chaile rico
OS «VICENTBS» 65
de ramagens, à beira de Santa Cruz. E ou-
tra, descendo do mercado abraçada a uma
càntarinha de barro da Gegonheira: — «E' o
nosso coração». Bem sabia ela porquê. Ne-
nhuma tricana ignora que o primeiro «Vi-
cente» nasceu de um romance de amor. Mui-
tas delas conheceram a Deolinda, a mais bo-
nita das ttrès irmãs da Alegria», em cujo
colo esbelto, melodioso, quási imaterial como
o de certas Virgens de Fra Filippo, a mão
amorosa de Vicente Arnoso atou, tremendo,
a primeira fita de veludo preto. A paixão da
pobre tricana, a sua dôr silenciosa ao vêr
partir para a Alemanha o único homem que
amara, a fita preta a que ela chamava «o seu
vicente» e que nunca mais tirou do pescoço
até morrer de saudade, — essa anecdota sen-
timental que enche de tão tocante poesia a
«moda do vicente», não há em Coimbra uma
só rapariga que a não saiba, uma só que não
veja, que não sinta nesse pedaço de veludo
que as faz tão lindas (pobres delas!) palpitar
um pouco da sua própria vida, do seu pró-
prio coração, do seu próprio destino de flo-
res efémeras, no mesmo instante colhidas e
abandonadas. No martirológio amoroso que
todos os dias se escreve à beira do Mondego,
e em que pequeninos corações vivem o tempo
das rosas, a Deolinda podia, como as outras,
5
66 ESPADAS E ROSAS
ter apenas deixado de si a memória de uma
flor. Mas o acaso foi pródigo com ela, e a
pobre tricana morreu deixando a todas as
raparigas de Coimbra, num pedaço de fita
que se tornou um símbolo e um clarão, a he-
rança imortal da sua beleza e da sua graça.
DOIS CAPACETES
Devia ter sido por fins de agosto de há
dois anos. O ministro da guerra português,
de regresso da sua viagem a Fiança, trou-
xera comsigo algumas relíquias de batalha
— estilhaços apanhados na ábside de Reims,
capacetes metálicos de soldados mortos, es-
poletas de granadas caídas nas trincheiras
portuguesas — e resolvera oferecê-las ao
novo Museu da Grande Guerra. Todos os
dias o general director, um erudito e um
gentil-homem, esperava com impaciência a
anunciada oferta do ministro. Eram despo-
jos da mais formidável luta que algum dia
o animal humano travou sobre a íerra ; era
um pouco da alma distante e heróica de Por-
tugal, um pouco da glória dos nossos ses-
senta mil «serranos», que vinha até nós:
como não havíamos, nós todos, de receber
com curiosidade e com emoção esses pedaços
68 ESPADAS E ROSAS
de morte onde se sentiria palpitar o coração
de bronze da epopeia? Uma bela manhã, a en-
comenda chegou. Trazia-a um sargento, com
uma carta do ministro. O general abriu o en-
cerado negro que envolvia o pacote, e, co-
movido, colocou sobre a mesa, com alguns
estilhaços de granadas alemãs, dois capace-
tes metálicos, lurados de balas e empastados
de sangue, que tinham pertencido aos dois
primeiros soldados portugueses mortos nas
trincheiras da Flandres. Examinei-os, deti-
damente. Lembravam em tudo, menos na côr,
a celada espanhola de Dom Quixote e os mor-
riões seiscentistas dos arcabuzeiros do Amei-
xial e de Montes-Claros. Uma vaga tinta de
folha morta, uma incerta mancha de bronze
florentino pareciam escorrer, babar esses
dois cascos, do timbre às abas, dando-lhes o
aspecto, ao mesmo tempo luminoso e pulve-
rulento, da terra removida de fresco. Um era
canelado, do tipo inglês, apresentava o fron-
tal dilacerado por uma bala, o forro de coiro
empapado de sangue, e cheirava fortemente
a crèsil. O outro era liso, tipo português,
estava perfurado na têmpora esquerda, e não
trazia forro. Tinham pertencido — informara
o brigadeiro comandante ao oferecê-los ao
ministro da guerra — a dois homens do ba-
talhão do 28, gente dos arredores de Coim-
DOIS CAPACETES 69
bra, ágil, robusto, curtida do sol. Quem se-
riam, na sua gloriosa obscuridade, esses
heróis humildes? Com a voz embaciada de
comoção, o general leu dois nomes num papel
que lhe tremia nas mãos: Armando Correia,
soldado n.° 503 da 4. a companhia de infante-
ria 28; 1.° sargento do mesmo regimento,
Ernesto Augusto dos Reis. Perante aqueles
troféus de batalha, símbolos de uma nova
Ilíada, em cujo frio metal resplandecia e
chorava a alma da pátria, todos nós nos des-
cobrimos respeitosamente, em silêncio.
Desde então, empreguei todos os esforços
para saber como ocorrera a morte dos dois
soldados. O simples exame dos capacetes
apenas nos permitiria concluir que se tra-
tava de duas feridas do crâneo, não por esti-
lhaço, mas por bala. O papel que os acom-
panhava limitava-se à revelação seca de dois
nomes. A carta do ministro nada mais dizia
senão que esses dois homens tinham sido os
primeiros soldados portugueses caídos glo-
riosamente na terra da França. Fizemos
conjecturas sobre conjecturas. A verdade só
há pouco tempo a soube, na simplicidade
épica dos seus pormenores, quando o pri-
meiro oficial permissionário do 28 passou
por Lisboa. Cada uma dessas mortes cons-
titúe um episódio sensibilizado!*. Ambas
70 ESPADAS E ROSAS
realizam a expressão eloquente daquela bra-
vura risonha, daquele quási inconsciente
desprêso do perigo, daquela abnegação teme-
rária e sublime que até hoje, desde que a
primitiva gente hirsuta dos concelhos se
bateu nas Navas-de--Tolosa, teem sido sem-
pre as mais belas, as mais nobres, as mais
altas virtudes guerreiras dos portugueses.
Contam-se em poucas palavras esses dois
pequenos poemas heróicos que recordam, na
pura nitidez do seu mármore eterno, dois
baixos-relevos gregos de batalha. Algumas
unidades das tropas portuguesas, dos tonies,
cujo uniforme de cinza dava ao longe a im-
pressão de uma vaga névoa azulada, tinham
ido ocupar, entre Armentières e La Bassée,
as trincheiras da primeira linha. Gente tis-
nada e ardente do meio-dia, criada para a
vertigem impetuosa dos combates e para a
alegria pagã do sol, os serranos mal podiam
habituar-seà imobilidade triste de uma guerra
de toupeiras, feita em buracos de terra, num
clima brumoso e melancólico do norte. Pas-
saram-se dias, semanas inteiras de nevoeiro,
de frio, de enervamento, de lama. Uma bela
manhã, no fundo de uma trincheira onde mal
se adivinhava a luz, os soldados portugueses
perceberam que lá fora — finalmente! — se
desfizera a bruma e rompera o sol. Não
DOIS CAPACETES 71
houve mais contê-los, que não saíssem dos
fojos, como os lobachos pequenos das serras
beirôas depois da tempestade, a aquecer-se,
a saltar, a uivar, a cantar, doirados pelo sol
pardo da Flandres francesa, bêbados da ale-
gria selvagem da luz, indiferentes à ameaça
de morte que lhes passava a cada instante
sobre a cabeça. Foi então que um deles, para
sentir melhor nos olhos e na pele aquele
clarão bemdito que tanto lhe lembrava a
écloga cristã da sua terra, galgou a escarpa,
alcançou o parapeito sem que pudessem
detê-lo os camaradas, — e enorme, tranquilo,
deslumbrado, o capacete na cabeça, o capote
flutuando ao vento, avançou nas «terras-de-
ninguêm» até à rede de arame farpado. Logo
as metralhadoras alemãs crepitaram; estoi-
raram os morteiros de trincheira; pelos pe-
riscópios viu-se o vulto cinzento do soldado
estremecer, vacilar, cair como um farrapo
sobre as defesas de fio de ferro, e ficar de
bruços, os braços estendidos, baloiçando.
Estava morto? Estava ferido, apenas? A fuzi-
laria continuava ; estalavam os troncos de ár-
vore; o ar tremia, varejado de balas; nomea-
dos para ir levantar o corpo, dois maqueiros
entreolhavam-se, pálidos, imóveis. Era pre-
ciso que alguém se sacrificasse ao piedoso
dever de salvar a vida a um irmão de armas.
72 ESPADAS K ROSAS
— «Quem se oferece?» — inquiriu o oficial.
Um sargento avançou, vivo, trigueiro, fran-
zino: — «Pronto, meu alferes!» — Num re-
lâmpago, emquanto um morteiro, explo-
dindo, levantava uma nuvem de terra, subiu
o talude, ganhou a explanada, correu, — su-
bitamente estacou, rodopiou e caiu fulmi-
nado. Todas as tentativas eram já inúteis.
Uma rede de balas cortava o ar. A atmosfera
scintilava. Rasas com as leiras lavradas,
pacificamente, incólumes, as galinhas de uma
herdade próxima picavam a terra. Só mais
tarde, pela noite, foram arrastados para as
trincheiras os dois cadáveres. E aí está como
morreram, num dia luminoso da Flandres, o
primeiro sargento e o primeiro soldado de
Portugal. Os seus dois capacetes, empas-
tados de sangue e furados de balas, não são
hoje apenas dois troféus de batalha: são,
mais do que isso, a expressão sagrada da-
quela ância de liberdade e de sol, daquele
espírito de abnegação e de sacrifício, que
viveram sempre, através de oito séculos, rio
coração de todos os portugueses.
FRANK CRAIG
Ontem, no chá da Marques, M. me Z.
perguntou-me, angulosa, ligeira, masculina
no seu admirável trotteur côr de enxofre:
— Já viu a exposição do Frank Craig?
Tive de confessar que não a tinha visto
ainda. Sabia apenas que se abrira, na casa
Bobone, uma exposição de trabalhos de um
grande ilustrador inglês, mestre na pintura
histórica e na anotação graciosa das elegân-
cias modernas, e que esse artista notável,
verdadeiro virtuose da guache, hospedado
no palácio Monserrate, em Cintra, chegara
havia pouco de Londres, no último período
de uma tuberculose pulmonar. O atelier Bo-
bone era perto de mais para que eu me ti-
vesse lembrado de visitá-lo. Entretanto, pro-
meti a M. me Z. que, logo que tomasse a
minha chícara de chá, não deixaria de ir ad-
mirar Frank Craig, o maravilhoso inglês
74 ESPADAS B ROSAS
que, como aquele jardineiro-artista de Nu-
reham Gourtenay, quiz permitir-se o luxo
intelectual de vir morrer sobre um canteiro
de rosas. Quando eu, ao despedi r-me, lhe
beijava a mão, ainda a minha querida amiga
me repetia, flexuosa, metálica, mordente,
cruzando a perna e baloiçando o corpo na
penumbra baça da sala:
— Você verá como êle faz bem mulheres !
Cinco minutos depois, eu entrava na ex-
posição e recebia uma das mais nobres im-
pressões de arte da minha vida. Não havia
ninguém no atelier. Uma luz quieta e macia
flutuava naquele interior de capela, onde a
talha doirada das molduras, alinhada sobre o
roda-pé de carvalho, dava, de perfil, a im-
pressão fugitiva de um cadeirado capitular.
Frank Graig tem ali, quando muito, trinta
quadros, — óleos, aguarelas, guaches. Demo-
radamente, estudei-os, analisei-os, senti-os,
um a um. Grandes composições de história,
cheias de energia e de movimento, que pare-
cem cartões para a realização de frescos for-
midáveis ; estudos de interiores modernos,
onde passam figuras de uma elegância, de uma
transparência, de uma espiritualidade que fa-
zem de Frank Graig, como pintor de mu-
lheres, um descendente de Reynolds e de
Gainsborough, de Raeburn e de' Lawrence;
FRANK CRAIG 75
paisagens de árvores doiradas e de nevoeiros
azuis, dando a impressão estranha do nosso
campo e do nosso sol vistos através de uma
luneta fumada. Mas foi, sobre tudo, o pintor
de história que me impressionou. O severo
sentimento do f antigo» e do «primitivo» é de
tal modo intenso e exacto em Frank Craig,
que muitas das suas figuras parecem arran-
cadas à obra dos imaginários ornamentistas
do século xv, descidas dentre os pinasios de
chumbo da rosácea colorida de Canterbury,
ou debruçadas, entre jambagens de oiro, nas
iluminuras guerreiras das crónicas de Frois-
sart ou de Commines. Mas a esse arcaísmo
de visão e de maneira aliam-se a solidez, a
força, o vigor, o movimento, o saboroso na-
turalismo, a expressão flagrante de vida e
de verdade que foram sempre o segredo da
pintura inglesa, e que fazem de Mr. Craig o
que ele fundamentalmente é: um ilustrador
excepcional. Naquela luz e naquele silêncio
de studio, olhei em volta a exposição. Aqui,
num fundo sumptuoso de tapeçaria mudejar,
sentada numa cadeira do século xv, uma fi-
gura gótica de mulher, toda de branco, as
mãos estilisadas como as flores~de-lís de uma
auriflama rial, olha, vagamente, numa ati-
tude de desdém e de rancor; além, outra
mulher nobre, de negro, passa chorando en-
76 ESPADAS E ROSAS
tre homens de armas brutais, cujas bárbaras
cotoveleiras de ferro lampejam sobre a carne
dos braços mis; agora, uma cabeça de velha,
amantada num véu negro de Borgonha, re-
corda pelo esmalte, pela modelação, pelo vi-
gor, um Mémling, um Gérard David, um
Nuno Gonçalves; logo, sobre um enxeque-
tado heráldico de sinoble e de prata, desfila
uma teoria de jograis multicores que se di-
riam surpreendidos numa iluminura do Mu-
seu Britânico, — um equilibrando na ponta
do dedo uma pluma de pavão, outro condu-
zindo um urso, o terceiro, caprípede, corni-
cabro, montado como Xântias numa jumenta
branca, o último enorme, obeso, espécie de
Sileno embrulhado na murça vermelha de
doutor, a tocar gaita de foles; por um mo-
mento, os nossos olhos repousam numa fi-
gura de freira carmelita, expressão calma
de renúncia, de insensibilidade, de imobi-
lidade, que lê Fray Juan de la Cruz na
sombra violeta de um claustro; ao fundo, sur-
ge-nos a mais assombrosa tela de Frank
Craig, Confissão, obra de um inquietante po-
der dramático, de uma sombria e comunica-
tiva eloquência, em que um padre dominicano
robusto, quadrado, interrogativo, os braços
estendidos sobre a tapeçaria de Flandres que
recobre a mesa, ouve de confissão um esco-
FRANK CRA1G 77
lar de face glabra e de roupa negra talar,
cujos pés, calçados de sapatos polacos pon-
teagudos, parecem tremer no lajedo frio do
chão. Toda essa multidão de vitral e de Li-
oro-de-Horas agita-se, vive, sente, move-se,
fala em volta de nós; interessa-nos pela vio-
lência do seu drama humano; prende-nos
pela persuasiva verdade das suas atitudes,
das suas expressões, dos seus gestos ; co-
munica-nos a emoção religiosa do passado,
— e não é sem uma desconcertadora surpresa
que nós transitamos, do Frank Craig pintor
de história, para o Frank Craig pintor de
elegâncias contemporâneas; não é sem um
estranho encanto que o vemos, nas suas in-
comparáveis monocromias, dar-nos a graça
ondulante e ligeira de Lady Cosmo, a subtil
formosura das spinsters, toda a espirituali-
dade transparente e delicada das sedas, dos
tules, das cassas, das musselinas, a distin-
ção Saint James's Street dos interiores mo-
dernos, — bancos de bar, mesas de bridge,
áleas de jardim, soluços de Schumann, phlox
côr de rosa do Moor Park — e, por todos os
cantos, em todas as telas, como uma obses-
são, a Colombina eterna, a Pierrette imor-
tal, loira, branca, dormente, translúcida,
misteriosa, vôo e espuma, névoa e flor, obri-
gando-me a repetir, como M. me Z., deslum-
78 ESPADAS E ROSAS
brado, quási fatigado de beleza, de côr, de
ritmo, de sedução:
— Na verdade, como êle pinta bem mu-
lheres!
Levei duas horas a vêr trinta quadros.
Quando saí da exposição de Frank Craig,
acompanhou-me um sentimento de profunda
tristeza. Pensei que todas aquelas maravi-
lhas eram a última obra de um inglês doente,
que poucos meses poderia ter de vida, e que,
talvez àquela hora, embalado pelo perfume
das rosas de Monserrate, tão conhecidas de
Byron, se estivesse despedindo, entre lágri-
mas, da glória suprema de viver. . .
A ARTE DE SER FELIZ
Há dias, quando fazíamos, com Miss Ro-
semary, a volta de Cintra para o Estoril, re-
bentou uma câmara de ar. Outro automóvel,
que vinha em sentido contrário, parou para
nos prestar auxílio. Conduzia um homem e
uma senhora, cincoenta anos talvez, embru-
lhados em grandes casacos de gabardine côr
de folha morta, — naturalmente marido e
mulher. Iam de mãos dadas, ela um pouco
reclinada sobre o ombro dele, um sorriso
nos lábios, um plaid sobre os joelhos. Miss
Rosemary, que os conhecia, agradeceu-lhes
e apresentou-me. Trocámos simples expres-
sões de cumprimento, remcdiou-se a panne,
despedimo-nos, e, numa atmosfera faiscante
de poeira e de sol, os dois automóveis puze-
ram-se a caminho.
— São noivos? — perguntei eu á encan-
tadora inglesa que me acompanhava.
80 ESPADAS E ROSAS
— Não. Já teem um filho de quási trinta
anos.
Sorri-me. Miss Rosemary compreendeu
o pensamento que o meu sorriso escondia,
e disse-me, aconchegando ao pescoço rosado
de loira o seu maravilhoso renard argente:
— Vocês, os portugueses, teem uma noção
detestável do casamento. Não compreendem
uma carícia, um movimento de ternura en-
tre mulher e marido, senão nos primeiros
meses da lua de mel. Depois, acham tudo
ridículo, — até um aperto de mão!
íamos contornando o cabo da Roca. Dis-
traí-me a olhar o oceano, a crista glauca e
translúcida das vagas, o fumo de um navio ao
longe, a espuma que cachoava, scintilando,
de encontro às rochas abruptas cortadas de
nódoas vermelhas de schistos. Quando dei
por mim, estávamos no Estoril. Fomos to-
mar uma chícara de chá ao Estrade. Um
quarto de hora depois, no jardim de inverno
do hotel, baloiçando-se no seu cadeirão
Brougham, Miss Rosemary contava-me a
vida dos dois felizes mortais que tínhamos
encontrado no caminho e que, a trinta anos
do contracto matrimonial (o único em que
não se exige que as partes contratantes
estejam no pleno uso das suas faculdades
mentais), conservavam ainda a mesma ter-
A ARTE DE SER FELIZ 81
nura, as mesmas ilusões, o mesmo enlevo
amoroso dos seus primeiros dias de ca-
sados.
Ela, muito interessante, era filha única
dos barões de V., mas não usava o título.
Ele, educado na Inglaterra, tinha uma situa-
ção de destaque na alta finança. Conhece-
ram-se onde, em geral, se conhecem todos
os noivos elegantes — num baile. Duas sema-
nas depois de apresentados, êle pediu-a,
despediu-se até ao dia do casamento — daí a
três meses — e partiu para Londres. Só se
tornaram a ver no próprio dia em que se
casaram, às 7 horas, na igreja da Pena,
numa terrível manhã de nevoeiro. De volta
a casa, quando os pais procuraram os noi-
vos, não os encontraram. Tinham fugido
na mesma carruagem que os trouxera da
igreja, e, durante uns poucos de meses,
ninguém soube mais deles. «Vamos isolar-
nos como todos os animais que amam —
deixou êle escrito num bilhete a lápis — para
não aturar papás, nem mamãs, nem visitas
importunas». Quando regressaram a Lisboa,
foram habitar um palacete de dois andares,
a S. Sebastião da Pedreira, montado com
todas as elegâncias modernas, móveis de
Dampt e de Dufrêne, ferros forjados de Bra-
quemond, e um admirável tecto de Albert
6
82 ESPADAS E ROSAS
Besnard, — três Amores dançando numa
chuva de rosas. Ele instalou-se no rés-do-
chão. Ela, no primeiro andar. Cada um tinha
o seu quarto-de-cama, a sua casa-de-banho,
o seu quarto-de-vestir, o seu luncheon-room
independente. Dormiam sempre sós; janta-
vam sempre juntos; uns dias almoçava ela
nos aposentos dele, outros dias êle nos apo-
sentos dela. Não se tratavam por tu. Manti-
nham, intacto, o culto verdadeiramente inglês
da família, — reduzindo ao mínimo todos os
inconvenientes da familiaridade. Essa tor-
tura a que um francês de espírito chamou
«1'étérnité du tête-à-tête», não existia para
eles. Todos os seus actos, todos os seus
gestos, todos os seus pensamentos obede-
ciam à preocupação de não diminuir, pela
demasiada aproximação, pelas revelações
excessivamente materiais da sua vida con-
jugal, a dignidade, a idealidade do seu senti-
mento amoroso. Acima de todas as loucuras,
de todos os entusiasmos da paixão, coloca-
vam o respeito de si próprios e do seu pró-
prio afecto. Conseguiram, por esse instinto
da felicidade, que é o verdadeiro segredo
das pessoas felizes, o milagre de viver como
dois noivos, entregues a todos os arrebata-
mentos de um grande amor, sem conhecerem
as excessivas, as desagradáveis, as grossei-
A ARTE DE SER FELIZ 83
ras intimidades, que conduzem, inevitavel-
mente, ao fastio e à desilusão. Enobreceram
tanto a vida, mostraram-se sempre, um ao
outro, tão superiores e tão perfeitos, que
nunca deixaram de admirar-se, de respei-
tar-se — e, por conseguinte, de amar-se com
a mesma delicada e tranquila emoção. Nem
os primeiros filhos perturbaram a sua exis-
tência de noivos eternos. O segundo andar
estava já mobilado — um Jémont branco e
oiro, cheio de berços — á espera dos bebés
e das amas. Um, dois meses antes dos pe-
quenitos nascerem, ele ia viajar sozinho —
França, Itália, Inglaterra — , e só voltava
um, dois meses depois deles terem nascido,
para recomeçar a sua permanente lua de
mel com uma mulher que, aos seus olhos,
nunca deixava de ser bela e de viver nessa
vaga atmosfera luminosa de idealismo e de
mistério, sem a qual não existem, nem os
grandes heroísmos, nem as grandes pai-
xões.
E Miss Rosemary concluiu, recostando a
sua linda cabeça de Botticelli sobre a almo-
fada vermelha do cadeirão:
— Sabe você ? A maior parte da gente é
infeliz no casamento, não porque não possa,
mas porque não sabe ser feliz. A felicidade
é qualquer coisa que depende mais de nós
84 ESPADAS E ROSAS
mesmos, do que das contingências e das
eventualidades da vida. E' necessário cola-
borar com o destino, meu amigo, e aprender
a viver como se aprende a ler, a fazer renda
inglesa ou a jogar o foot-ball. «La vie est un
mêtier qiCil faiit se donner la peine d'appren-
dre*. A felicidade é, sobre tudo, uma questão
de educação. Você nunca aprendeu a ser
feliz ?
— Há muito tempo, minha querida amiga.
Mas já me esqueci.
AUGUSTO ROSA
Vou falar-lhes da última doença e da
morte de Augusto Rosa.
Não infligiria, de certo, ao meu espírito, a
tortura de recordar essa tremenda página de
agonia, se o glorioso artista, que tão nobre
e tão bela soube tornar a sua vida, não ti-
vesse convertido numa grande lição de be-
leza a sua própria morte. Sou daqueles que
entendem (e com íntima convicção!) que a
doença, como todas as misérias, tem o seu
pudor, e que, sobre tudo tratando-se de ho-
mens eminentes, se deve envolver na pie-
dade do silêncio tudo quanto o espectáculo
da morte tem de deprimente para a digni-
dade humana. Mas Augusto Rosa foi uma
excepção. Augusto Rosa pertenceu a essa
rara estirpe de criaturas que possuem o con-
dão de elevar e de enobrecer tudo aquilo que
as toca, e que, ou calcem as sandálias doi-
86 ESPADAS E ROSAS
radas de Alcibíades, ou vistam a casaca ver-
melha de Lauzun, ou atem a gravata inve-
rosímil de George Brummel squire, parecem
criadas pela Providência para, de tempos a
tempos, com o seu sorriso frio, ensinarem o
resto da humanidade a estilisar a vida e a
encher de beleza a dôr e a morte. O grande
artista foi, na sua máxima expressão e até
ao seu último alento, — um elegante. Soube,
como Dorian Grey, «viver em plena arte».
Conseguiu, como Hedda Gabler, «morrer em
plena beleza».
E, entretanto, Augusto Rosa sucumbiu a
uma doença horrível: um cancro no pulmão.
Tinha-se operado, hú dezasete anos, de uma
nodosidade cancerosa sub-cutânea da aza do
nariz; a neoplasia toráxica, que o vitimou
agora, deve ter sido uma metástase ganglio-
nar, mediastínica, que se desenvolveu len-
tamente, aderiu à pleura, invadiu o paren-
quima pulmonar, — e produziu, há de haver
cinco meses, os primeiros sintomas graves
de compressão e as primeiras hemoptises. O
grande artista teve o pressentimento de que
seria aquela a sua último doença; mos nunca
soube, nem suspeitou sequer, até ao último
momento, a-pesar de pertencer a uma dinas-
tia de cancerosos, que se tratava do mesmo
mal a que tinham sucumbido seu pai, sua
AUGUSTO ROSA 87
mãe, e dois dos seus avós. Vi-o em seguida
à primeira crise e impressionou-me o seu
aspecto, a sua côr, essa palidez baça de por-
celana que os médicos conhecem tão bem, a
face pendente, o lábio violáceo e descaído, a
sua bela cabeça de romano trabalhada já
de uma repentina senectude, que lhe endure-
cia os traços, que lhe avivava os relevos
ósseos, e que, não sei porquê, me fez pen-
sar em certas águas-fortes de Dúrer. Dis-
se-me que vivia artificialmente de injecções
de morfina; que o atormentavam umas do-
res reumatóides no braço esquerdo; e con-
cluiu, deixando cair o monóculo, num gesto
de acabrunhamento e de desânimo: — «Este
coração, este coração...» Fiquei a olhá-lo,
emquanto êle se afastava na névoa luminosa
da tarde, elegante ainda a-pesar do visível
esforço dos seus movimentos, um completo
inglês, azul escuro, colado ao corpo, um
pardessus no braço, umas luvas de camurça
branca amarrotadas sobre a volta de oiro da
bengala. Lembrei-me da velhice, cheia de
distinção, do Visconde d'Orsay, e senti, ao
vê-lo descer a rua, querido, admirado, cor-
tejado, que Augusto Rosa se despedia vo-
luptuosamente da vida e que era aquele o
seu último passeio. Assim foi. Daí por dian-
te, o grande actor raras vezes saiu, sempre
O» ESPADAS E ROSAS
de carruagem, embrulhado num plaide acom-
panhado de sua esposa. As crises espasmó-
dicas repetiam-se ; uma tosse seca, quintosa,
coqueluchóide, atormentava-o; os acessos
de dispneia, cada vez mais frequentes, só
cediam à morfina; mas Augusto Rosa con-
tinuava a abrir os seus salões, a receber os
seus amigos, e, às vezes com o sofrimento a
pintar-se-lhe na cara, sorria, conversava, ro-
deava-se de arte, de alegria, de esplendor, de
juventude, procurava (com que dolorosa evi-
dência!) corrigir pelo culto, cada vez maior,
da sua elegância pessoal, as devastações im-
placáveis da doença e da velhice. Parece que
o estou vendo ainda, assentado num pequeno
sofá Luís XVI, ao fundo do salão, rodeado
de almofadas, a cabeça na atitude tão fina e
tão espiritual em que a surpreendeu o már-
more de Teixeira Lopes, os olhos mortiços,
a luz a encher-lhe de dedadas doiradas a
palidez inquietante da face e das mãos. Lia ;
recitava as obras-primas de todos os poetas;
versava com os seus amigos questões de es-
tética geral; improvisava serões literários;
a sua voz potente, pastosa, magnífica, de uma
sumptuosidade litúrgica, declamava Camões
e Petrarca, Ronsard e Gil Vicente, — e, á
medida que ôle próprio se ouvia, a fisionomia
animava-se-lhe, resplandeciam-lhe os olhos,
AUGUSTO ROSA 89
avivava-se o traço imperioso do seu nariz
Bourbon, e a sua trágica invalidez erguia-se
ainda na ilusão da glória e do triunfo. Mas,
dentro de pouco tempo, nem mesmo essa
ilusão caridosa a doença lhe permitiu. Os
sintomas nervosos de compressão agrava-
ram-se; às lesões irritativas do recorrente,
que tinham determinado terríveis espasmos
da glote, sucederam as lesões de destruição;
produziu-se a paralisia das cordas vocais;
veio a disfonia, — e o grande artista, que vi-
vera do esplendor máximo da palavra, em
cuja boca o verbo dos poetas se tornara
alma, luz, côr, sorriso, lágrima, emoção,
grandeza, encontrou-se sem voz, sofreu a
suprema agonia moral de vôr toda a sua
glória reduzida a um murmúrio apagado, e,
por momentos, sucumbiu. Restava-lhe a be-
leza, a elegância, essa flor ateniense de dis-
tinção e de graça que, pela vida adiante,
fora uma das razões do seu sucesso, e que
Augusto Rosa soube cultivar, até à morte,
com o escrúpulo voluptuoso de um grego da
decadência. Já de cama, recostado em almo-
fadões, vestido de um pijama de setim preto,
um pequeno espelho de prata na mão, levava
metade do dia a fazer massagens na face, a
frisar os cabelos, a polir as unhas, a esco-
lher jóias como um adolescente. Não recebia
90 ESPADAS E ROSAS
ninguém, nem o seu amigo mais íntimo, sem
estar, como êle próprio dizia sorrindo, —
«en beauté». A' semelhança de Lysícrato,
que, para receber a morte, mandou doirar o
linho da sua túnica, Augusto Rosa, antes de
morrer, preocupou-se ainda com a beleza
de um efeito de luz sobre o setim que o vestia,
e pediu que lhe lessem versos. Depois, a
cabeça pendeu, o nariz afilou-se mais, entrou
num breve coma, arfou num Cheyne-Stokes
sereno, e extinguiu-se, tranquilamente, pela
madrugada. Tinha morrido como vivera, —
com a dignidade de um esteta.
AS IDEAS DE FAUSTO ARANHA
Eu tinha ouvido dizer que o dr. Fausto
Aranha, meu colega pela Faculdade de Medi-
cina de Lisboa, estava doido. Foi, portanto,
com surpresa e, até certo ponto, com inquie-
tação, que eu ontem o encontrei no Palace
Club, afundado num dos Maples verdes da
sala de leitura, com um número do Times
sobre os joelhos e uma chícara de chá ao
lado. Assim que me viu, veio efusivamente
para mim, agitando os braços enormes, num
completo gris Oxford com grandes botões
pretos, que lhe dava o vago aspecto de um
Pierrot:
— Olá! Como está você?
Com franqueza, não notei na fisionomia
do meu colega a menor perturbação. O mes-
mo olhar vivo, a mesma face wildeana onde
scintilava a aresta de vidro de um monóculo,
a mesma elegância um pouco disparatada,
92 ESPADAS E ROSAS
as mesmas atitudes angulosas, oblíquas, pa-
radoxais como o seu espírito. Sentei-me
junto dele. Passei os olhos por um jornal.
Daí a pouco falávamos da guerra. Uma luz
tranquila, coada pelos espessos estores de
seda verde, enchia de uma penumbra doirada
aquele interior holandês. Um sujeito de
idade, calvo, distinto, grave, dormia, meio
oculto numa das poltronas. De repente, o
dr. Fausto Aranha arremessou o Times, ati-
rou uma perna sobre o braço da cadeira e
declarou-me, categoricamente:
— Sabe você quem fez a guerra ? Os ve-
lhos. E sabe você em proveito de quê? Da
velhice.
— Da velhice?
— Siga o meu raciocínio, e verá que con-
corda comigo. Nós estamos, porventura, em
presença de uma guerra de raças ? Não. Não
chegou ainda a grande calamidade prevista
por Penka e por Fouillé, a guerra dos dólico-
loiros com os bráqui-trigueiros, dos crâneos
compridos com os crâneos curtos, em que a
humanidade inteira se exterminará por um
ou dois graus de índice-cefálico a mais ou a
menos. Vemos, pelo contrário, um conjunto
heteróclito de raças — germânicos, celto-es-
lavos, mediterrâneos, negróides, amarelos —
combatendo em excelente harmonia o bloco
AS IDEAS DE FAUSTO ARANHA 93
áustro-germano-turco. Também não estamos
em presença de uma guerra de povos. A
maior parte dos povos empenhados na luta
não se batem por ódios históricos, nem em
nome de hostilidades tradicionais e heredi-
tárias ; massacram-se a frio, por disciplina,
por dever moral, metodicamente, automati-
camente, sem o entusiasmo sagrado, sem o
sentimento profundo da guerra. Também
não estamos em presença — inútil acentuá-lo
— de uma guerra de religiões. Que hipótese
resta ? A de uma guerra de interesses, — não
já, evidentemente, de interesses dinásticos e
familiares, como na Europa dos séculos xv
e xvi, mas de interesses dos sindicatos do
poder, de interesses de ordem comercial, de
ordem industrial, de ordem política, de or-
dem financeira, sob a etiqueta de vagas
abstracções filosóficas — direito, liberdade,
justiça. Por conseguinte, meu amigo, não é
a guerra das raças, nem a guerra dos povos,
nem a guerra das religiões, nem a guerra
dos reis: é a guerra das chancelarias. Quem
verdadeiramente se encontra em guerra não
são os ingleses, nem os italianos, nem os
alemães, nem os franceses, nem os ame-
ricanos, nem os austríacos: são os gabinetes
de Londres, de Paris, de Roma, de Berlim,
de Viena, de Washington. Quem compõe
94 ESPADAS E ROSAS
esses gabinetes? Velhos. O poder está, por
toda a parte, entregue à decrepitude. Que
sTio as chancelarias modernas? Oligarquias
de velhos ao serviço de sindicatos de velhos.
Que são, fundamentalmente, quási todos os
Estados europeus, monárquicos ou republi-
canos? Gerontocracias. Os destinos do mun-
do repousam hoje nas mãos senis de três
homens: Lloyd George, Hindenburgo, Clé-
menceau. Foram os velhos que fizeram a
guerra; são os velhos que a manteem; —
mas são os novos que se batem e morrem.
A grande revolução de amanhã não será
apenas do pobre contra o rico; do operário
contra o patrão; será também do moço con-
tra o velho — porque hâ-de ser, sob todas as
formas, a revolução do oprimido contra o
opressor. Percebeu você?
O chasseur veio abrir a luz eléctrica. Uma
rapariga loira espreitou à porta. O sujeito
de idade, que dormia na poltrona quando eu
entrei, tinha agora os olhos fixos em nós.
Não me atrevi a fazer a mínima objecção ás
ideas do meu colega, cujo estado mental
começava, de facto, a inspirar-me dúvidas.
Nervosamente, o dr. Fausto Aranha acendeu
um cigarro e continuou:
— Mas o que ô odioso, é que são pre-
cisamente os velhos, que desencadearam a
AS 1DEAS DE FAUSTO ARANHA 95
guerra, aqueles que mais teem a lucrar com
ela. Em quatro anos, a mortalidade, verda-
deiramente gigantesca nos países em luta,
perturbou a estrutura demográfica das popu-
lações. Não se modificou de maneira sensí-
vel o número de crianças e de velhos; dimi-
nuiu de muitas dezenas de milhões o número
dos homens válidos. Quer dizer: a percenta-
gem da velhice nas nações em guerra tor-
nou-se formidável. Até que a hipernatalidade
compense este desequilíbrio populacional,
os velhos gosarão de todos os benefícios
provenientes da diminuição de concorrência
das idades viris; toda a vida será invadida,
infiltrada, minada de velhos, e as geronto-
cracias, apoiadas agora na força de uma maio-
ria compacta, governarão ainda mais discre-
cionáriamente o mundo. Dirá você que a
velhice não resiste à vida intensa que se lhe
prepara; que não há, atrás dela, gerações
válidas que vão, por seu turno, envelhe-
cendo; e que, por conseguinte, em pouco
tempo, a percentagem dos senis, momenta-
neamente acrescida, baixará. Engano. E' que
você não conta com a maior, com a mais
inesperada vantagem que a guerra trouxe
aos velhos. A guerra, meu amigo, produziu
condições e oportunidades que permitem
assegurar a longevidade humana. Os velhos,
96 ESPADAS E ROSAS
cora os tecidos rejuvenescidos, poderão com-
pletar o seu ciclo vital e morrer, como pre-
tendia Buffon, com cento e muitos anos.
Está resolvido pela guerra o mais impres-
sionante de todos os problemas da ortobiose.
Gomo? Com o elixir de oiro de Roger Bacon,
com o grão filosofal do bizantino Teismu-
sin, com o sirmaísmo dos Faraós, com os
conselhos de Luigi Cornaro, com as fanta-
sias de Huffeland, com os fermentos lácticos
de Metchnickoff? Não. Apenas com polpas
frescas de órgãos e de tecidos humanos.
Você conhece, como eu, o mecanismo da
acção dos soros hemolíticos. Sabe que, injec-
tando num cavalo sangue humano, o soro
sanguíneo do animal preparado adquire a
propriedade de dissolver, de destruir os gló-
bulos do sangue do homem, e, em quantida-
des mínimas (tal qual como a digitalina para
o coração) a propriedade contrária de os
revigorar. O mesmo que se dá com os gló-
bulos do sangue, dá-se com os elementos
nobres de todos os nossos tecidos e órgãos
— células cerebrais, cardíacas, hepáticas,
renais--que, introduzidas na circulação de um
animal qualquer, provocam a formação de um
ambocéptor, de um anticorpo específico des-
truidor (ou, em doses mínimas, revigorador)
do cérebro, do coração, do fígado, do rim do
AS IDEAS DE FAUSTO ARANHA 97
homem, — isto é, a produção de um soro capaz
de prolongar a vida humana. Porque não se
tinha preparado ainda esse soro? Porque,
não sendo fácil tirar do corpo humano vivo
pedaços de órgãos, pelo menos com a sim-
plicidade com que se lhe tiram centímetros
cúbicos de sangue, e não se encontrando te-
cidos sãos em cadáveres, a não ser na hipó-
tese de morte violenta de organismos moços
e vigorosos, e imediatamente post-mortem,
— só uma grande carnificina, como a guerra
actual, poderia fornecer matérias-primas
frescas e abundantes para a fabricação de
um soro regenerador da velhice. Em conclu-
são : a vida dos velhos será prolongada ; a
percentagem de velhos, em vez de diminuir,
crescerá sempre ; cada vez mais o mundo
será irremediavelmente dominado pela ve-
lhice, e, se uma revolução dos moços se
não produzir, a humanidade regressará às
formas bíblicas e patriarcais. Por isso eu
lhe disse, meu excelente colega: esta guerra
foi inventada por um sindicato interna-
cional de velhos, a favor da decrepitude uni-
versal.
Despedimo-nos. Saí do Palace, intrigado.
Desde ontem que pergunto a mim mesmo
se o dr. Fausto Aranha será, realmente, um
louco.
O RATO E O VITRAL
Há tempo, fui visitar a Sé de ***. Rece-
beu-me, com a mais acolhedora bonomia, o
cónego Aires, um velho amável, solícito,
erudito, cumprimentador, que exercia no ca-
bido as funções de fabriqueiro e que andava
— disse-me êle — traduzindo as elegias de
Tibullo. As razões de carácter oficial que me
levavam a penetrar no antigo templo — o
exame dos documentos do cartório capitular
— pareciam não ter disposto Monsenhor Ai-
res muito desagradávelmente a meu respeito.
Quando atravessávamos a sacristia, eriçada
de andaimes e de escadotes, o douto cónego
informou-me de que a Igreja estava, havia
dois dias, fechada ao culto, por que iam fi-
nalmente principiar as obras cuja realização
êle tivera a honra de propor a sua ex. a re-
verendíssima. Demorei-me um instante a
admirar essa vasta quadra, com a sua abó-
100 ESPADAS E ROSAS
bada normanda sexpartida e lavrada nas ner-
vuras dos terciarões, a sua tábua flamenga
do século xv (talvez de Gérard David) encas-
trada no espaldar de talha doirada do arcaz
maior, e — o que era na verdade magnífico
— o seu rosetão gótico, cuja vidraça colorida,
na armadura grosseira dos pinásios de chum-
bo, vinha, batida das labaredas do sol, pro-
jectar-se nitidamente no chão. Monsenhor
não se esqueceu de fazer-me a história desse
vitral, velho de quatro séculos, onde, segun-
do a opinião do bispo D. Diogo Ortiz, estava
reproduzido um dos evangelistas da rosácea
multilobada de Toledo, palpitante ainda do
génio cristão de Petrus Petri. Com efeito,
perfilada de negro, no caixilho molíbdico
irregular do rosetão, a figura de um velho res-
plandecia, com a sua barba cinzenta, a sua
face pálida, o seu pallium roxo, um clarão
fulvo de auréola a circundá-lo como a certos
apóstolos iluminados no Psaltério de S. Luís,
— e, hierática, enorme, chamejante, ia alon-
gar-se projectada no lajedo da sacristia,
forma humana impalpável exalando uma
emanarão de oiro fluido, e scintilando, fla-
mejando, irisando-se em todas as cores do
espectro solar. Evidentemente — creio que
foi Ruskin que o disse — a beleza maravi-
lhosa dos vitrais é mais a obra da luz, do que
O RATO B O VITRAL 101
8 obra dos homens. Demorámo-nos um mo-
mento ainda. Admirámos mais uma vez a
velha tábua flamenga, decerto escola de Mém-
ling, onde uns meninos nús brincavam sobre
uma almofada de rico vermelho, — e segui-
mos, Monsenhor Aires e eu, a caminho do
cartório. Foi incalculável o número de de-
graus que tivemos de subir. Infelizmente,
o cónego claviculário não deixara as chaves
dos armários grandes, e eu vi-me obrigado
a transferir o exame dos pergaminhos para
o dia seguinte. Descemos. Quando entráva-
mos de novo na sacristia, Monsenhor dete-
ve-me, travou-me do braço, e apontou-me
um pequenino rato que marinhava, com des-
treza, pelo bojo entalhado do arcaz :
— E' isto. Desde que fechámos a Igreja,
já andam por aqui de dia. . .
Ficámos ambos, na soleira da porta, ob-
servando os movimentos do animal. Era um
musurídio vulgar, ligeiro, esperto, ágil,
nervoso, dando a impressão de uma bola de
azougue dentro de um pedaço de feltro, um fo-
cinho agudo e hirsuto, umas patas curtas,
rosadas, com qualquer coisa de humano, e a
expressão confusa de um deslumbramento
nos olhitos redondos de roedor habituado ao
silêncio e à escuridão. Subiu, empoleirou-se
na cimalha do arcaz, e ficou um momento,
102 ESPADAS E ROSAS
imóvel, espreitando para baixo numa ati-
tude interrogativa e inteligente. Não foi di-
fícil perceber que o pequeno rato — para o
qual só eram familiares os aspectos nocturnos
da Sé — olhava surpreendido a projecção lu-
minosa do vitral da sacristia. Que seria
aquilo? Uma imagem humana, talvez um
cadáver susceptível de ser roído, devorado
voluptuosamente por todo o capítulo solene
dos ratos da velha catedral, — em todo o caso
uma forma inerte de que não seria perigoso
acercar-se. O rato desceu ; ganhou o chão ;
pouco a pouco, cautelosamente, foi-se apro-
ximando da mancha colorida da rosácea,
donde parecia elevar-se uma poeira metálica
refulgente; atingiu o contorno oval da pro-
jecção; entrou, hesitando, no foco luminoso
que produzia aquela maravilha de côr; er-
gueu-se um momento nas patas trazeiras,
— e, de repente, como se uma vibração elé-
ctrica lhe percorresse o dorso, começou a
correr em todas as direcções, desorientado,
inquieto, tacteando, farejando, afocinhando
a pedra. Não encontrava coisa alguma do
que vira lá de cima, na siía miragem des-
lumbrante. Era sempre o mesmo lajedo, —
menos frio, talvez, por que êle sentia o calor
do sol na polpa rosada das patas; e a própria
côr, que criara no seu cérebro rudimentar
O RATO E O VITRAL 103
de mus oulgaris a ilusão magnífica do um fes-
tim, não a percebia, não a distinguia agora,
mergulhado como estava, ele próprio, no
clarão que o iludira. De novo o pobre animal
subiu ao arcaz; de novo desceu, movendo o
focinho ancioso, fitando as orelhas, correndo,
procurando, numa inquietação, a imagem
que tão distintamente via a distancia e que
desaparecia para êle no momento em que a
alcançava. O velho cónego e eu, que seguía-
mos em silêncio este espectáculo inesperado
e singular, entreolhámo-nos, na comunhão
do mesmo pensamento. Afinal, aquele rato
— profunda filosofia das coisas mínimas!
— éramos todos nós. Na aflitiva anciedade
desse pequeno animal estava, com os seus
sonhos insatisfeitos, com os seus ideais ina-
tingíveis, com as suas ilusões desesperado-
ras, todo o drama da alma humana. Gomo o
reflexo desse vitral gótico, o bem que se de-
seja só existe emquanto o vemos de longe; e
toda a felicidade sonhada desaparece para
nós no momento em que julgamos possuí-la.
Monsenhor Aires deu-me o braço, e já â
porta da Sé, cobrindo com o chapeirão a ca-
beça branca e lisa como um solidéu de prata,
repetia-me ainda:
— Escreva o apólogo do rato e do vitral.
Olhe que aquilo, meu caro senhor, é a vida !
OS BÁRBAROS
Vieram servir-nos o chá. O moço capi-
tão ••*, recêm-chegado da Flandres, atirou o
stick, descalçou as luvas, e emquanto as chí-
caras fumegavam, continuou a contar-me
as suas impressões da guerra:
— O capacete dos boches? Ah, meu exce-
lente amigo ! Não sei quem foi que lhe cha-
mou o «símbolo da regressão mental do
povo alemão». O que posso afirmar-lhe é
que aquele capacete estreito de sola, curto,
braquióide, onde não cabe um crâneo portu-
guês, armado de um formidável espigão de
ferro e produzindo na sombra o perfil bárbaro
do casco de bronze de um cimbro ou de um
teutão, constitúe a expressão perfeita da psi-
cologia do prussiano moderno. Já mesmo
tive dois ou três nas mãos. Sabe quando?
Na noite de 1 de março do ano passado, —
precisamente quando se realizou o primeiro
106 ESPADAS E ROSAS
raid mais sério dos alemães sobre o sector
português de Neuve-Chapelle. Creio que a
notícia desse raid e da bravura com que nós
o repelimos, não chegou cá. Ou, se chegou,
o governo sepultou-a no silêncio. Mas eu lhe
conto como foi. Nós, batalhão de infanteria 4,
ocupávamos na frente britânica um pequeno
sector em terreno húmido, pantanoso, onde
não era possível abrir trincheiras, e onde,
por conseguinte, todos os trabalhos de pro-
tecção se reduziram a um sistema exterior
de defezas em superfície, organizado com
sacos de terra e sem a menor resistência
contra um violento bombardeamento de des-
truição. Na nossa frente, os alemães manti-
nham-se numa posição magnífica, — a crista
de Aubers. Havia já oito a dez dias que nós
notávamos uma certa efervescência nas
linhas boches ; começávamos a viver na ten-
são de nervos das grandes expectativas ;
mas os ventos de oeste, contrários ao ini-
migo, lufadas de gelo que secavam a lama
debaixo das rodas dos nossos canhões e nos
defendiam dos gazes asfixiantes melhor do
que todas as máscaras e todos os capuzes,
davam-nos ainda a esperança de poder dor-
mir tranquilos nas noites mais próximas.
Não sucedeu, porém, assim. Logo na noite
de 1 para 2 de março, a irrupção alemã, pre-
OS BÁRBAROS 107
cedida classicamente de uma larga barragem,
deu-se ao mesmo tempo em vários pontos
da linha britânica — Saint-Quentin, Hagi-
court, Neuve-Chapelle, Passchendaele — e
nós, portugueses, tivemos a honra e a sorte
de aguentar ali, nas margens do Lys, em
pleno pântano, em plena treva, quási a peito
descoberto, varridos de metralha, a marte-
lada de ferro de dois batalhões. O nosso cen-
tro pareceu ceder um instante, numa brusca
flexão involuntária; mas, de súbito, as alas
direita e esquerda dobraram-se sobre o ini-
migo envolvendo-o, as reservas chegaram, e
— meu camarada! — aquilo é que foi acabá-
los à baioneta, abrir cabeças à trasmontana,
e quanto mais os boches, fingindo-se ingle-
ses, gritavam para desorientar os nossos
soldados — Do not shoot! Hands up! We are
english! — mais as coronhas abatiam sobre
eles, na escuridão ; mais as metralhadoras
crepitavam ; mais o sangue alemão nos es-
pirrava em postas na cara, — tanto e tanto,
que, quando se levantou o sol, afirmo-lho eu,
tínhamos merecido bem que Barres, o ilus-
tre Barres, nos chamasse «les glorieux mon-
tagnards a la peau bronzêe». E os capace-
tes? — perguntará você. Foi então que, pela
primeira vez, os vi bem. Filosofei toda essa
tarde — quer crer ? — diante de uma taça de
108 ESPADAS E ROSAS
champanhe e de um capacete alemão. Não ha-
via dúvida : era ainda o casco guerreiro de um
bárbaro. Bastava olhá-lo. Estava ali, nesse
capacete de coiro de boi, armado de um alto,
de um enorme espigão prismático de ferro, a
revivescência ancestral dos velhos cascos
mitrados, dos capelos de ferro ponteagudos,
dos ferozes cornos de bronze que coroavam
na guerra as hordas de hunos, de cimbros,
de teutões e de vândalos. A mesma preocu-
pação de intimidar pela elevação da estatura
humana, o mesmo espírito de terror supers-
ticioso que inspiraram e criaram os cones
de cobre dos cascos assírios e etruscos, os
heróicos chavelhos gauleses, os capacetes
agudos dos metalurgistas sassânides e mu-
dejares, os cascos de ponta dos guerreiros
da tapeçaria sumptuosa de Bayeux, os bacine-
tes e as barbudas eriçadas de ferro do século
xv, — mantinham viva a sua expressão ana-
crónica na lança do capacete prussiano, com
que os Hohenzollern se propunham intimi-
dar o mundo. Para mim, que sentia ainda
o travo do sangue no champanhe que estava
bebendo; para mim, que acabava de bater-me
por ideais modernos de generosidade e de
liberdade, aquele capacete era alguma coisa
mais do que um simples anacronismo, — cia
uma afirmação eloquente do carácter de
OS BÁRBAROS 109
regressão da mentalidade alemã. «A Alema-
nha esta ainda no seu Luiz XIV», — disse um
dia não sei quem, Williams, ou Schwob, ou
Demolins. Isto é uma frase, meu caro cama-
rada; mas por detrás desta frase há uma
verdade resplandecente. O alemão criou uma
civilização maravilhosa; mas conservou a
alma antiga de um wiking, cheia de supers-
tições e de ferocidade. Sabe o que falta a esse
grande povo? Falta-lhe ter sofrido. A der-
rota inevitável será para ele amanhã uma
grande vitória moral, — porque o redimirá
pela consciência da sua dignidade de povo
livre. Temos de o combater implacávelmente,
até que o capacete de ponta de ferro, o capa-
cete brutal dos super-titans de Nietzsche e
de Hindenburgo, símbolo da força e da vio-
lência, do orgulho e da dominação, da cruel-
dade e da barbaridade, desapareça para sem-
pre da face da terra.
MADRE AxNA DOROTEA
«Meu amigo:
Vou contar-te a história de uma pequena
faiança que tenho em minha casa — uma
jarra de Darque, século xvm, com o escudo
de S. Bento — em que, desde ontem, estou
convencido de que vive uma alma. Sim, meu
amigo, não te rias : uma alma. Eu detesto,
como tu, a literatura do invisível e do sobre-
natural. No meu fenomenismo middle class,
fui sempre um homem vulgar para quem
apenas e mundo rial existe, e não me lem-
bro de ter experimentado alguma vez, a não
ser ontem, a necessidade intelectual de ex-
plicar o inexplicável. Ontem à noite, porém,
deu-se em minha casa um facto tão impres-
sionante e tão extraordinário, que eu já me
sinto inclinado a crer, como o velho monge
Gouber, que «les choses visibles sont seule-
ment le signe des irwisibles» e que, para além
112 ESPADAS E ROSAS
das rialidades palpáveis e das formas corpó-
reas, se agita, imperceptível ainda para nós,
um mundo confuso de forças e de sombras.
Vou referir-te em duas palavras esse facto,
que tu estás no pleno direito de considerar
inverosímil, em que eu mesmo não acredi-
taria se o não tivesse visto com os meus
próprios olhos, e que não foi evidentemente
uma alucinação, porque o verificou minha
mulher e o confirmaram cinco ou seis pes-
soas que estavam comnosco na sala de
música.
Tu sabes que eu fui o universal herdeiro
do meu tio Marquês de ***, um singularís-
simo velho que nunca teve uma casaca na
sua vida, que nas ocasiões solenes vestia a
do criado, e que, na falta de parentes mais
próximos, me deixou toda a sua casa e bens.
Como nós não estávamos dispostos a ir viver
para Viana, onde meu tio possuía os solares
de S. Gil de Perre e da Torre do Paço, trou-
xemos parte da mobília, as pratas, e alguns
azulejos da quinta para Lisboa, mostrando
minha mulher um grande interesse em que
viessem tambcm os objectos pertencentes,
segundo tradição de família, à nossa tia-avó
Madre Ana Dorotóa de Abreu Noronha Souto
Maior, que aos vinte e sete anos de idade
e onze de hábito morrera abadessa no mos-
MADRE ANA DOROTBA 113
teiro de S. Salvador de Vairão. Esses ob-
jectos, durante algum tempo esquecidos no
palheiro da casa, eram apenas três: uma
arca pequena de ferragens contendo breviá-
rios, papéis de solta e receitas de doce ; uma
jarra de faiança de Darque, armoriada, deco-
rada de borra de vinho e amarelo, com a le-
genda «Aoe Maria», e um cravo italiano de
martelos, de quatro oitavas, assinado «Gas-
pare Assaíone, 1750», com uma pastoral pin-
tada no tampo de harmonia, admirável peça
de museu que mandei restaurar a Milão, e
que hoje está na sala de música, com a faiança
em cima e a arca ao pé, num cantinho a que
nós familiarmente chamamos «a cela de Ma-
dre Dorotéa». Muitas vezes me contou meu
tio a lenda, guardada com carinhosa piedade
pela família, de que a nobre freira morrera
subitamente uma tarde, sentada a este cravo,
cantando, com as mãos brancas sobre o te-
clado, um motete religioso de Jomelli, e que,
na hora do seu passamento, a pequena jarra
de Darque, sem flores, gotejara sobre o
tampo da espineta o orvalho de duas lágri-
mas. Procurei inutilmente, nas memórias
conventuais e no livro de óbitos de S. Sal-
vador do Porto, qualquer referência a esta
tradição piedosa, e, com franqueza, já me
tinha esquecido dela quando, ontem à noite,
8
ilí ESPADAS Ê ROSAS
a loira Miss Kate Watson, depois de tocar
no nosso Steinway as Valses Nobles e a Pa-
vane pour une Infante de funde, de Ravel,
teve a fantasia, verdadeiramente inglesa, de
reviver, diante desse cravo monástico do sé-
culo xvin, a lenda dos últimos momentos de
Madre Ana Dorotéa. A' falta de Jomelli, pro-
curou-se na arca um papel de música. Apro-
ximámo-nos todos. Miss Kate Watson, sen-
tada ao cravo, com os seus grandes olhos
azuis e o seu vestido leve de musselina bran-
ca, dava-me a impressão de um alto-de-porta
cie Columbano na Sala Doirada do Paço de
Belém. Os dedos da encantadora inglesa, lu-
zentes de anéis, correram o teclado, como
uma carícia; um fiozinho de voz, cheio de
unção religiosa, ergueu-se, cantou, gorgeou,
trilou, soluçou um motete de Scarlati ; dir-
se-ía que toda a alma desse velho cravo
chorava, "que todas as suas cordagens de
cobre gemiam como se as tocassem ainda,
frias pelo gelo da morte, as mãos da fidalga
abadessa de Vairão. Não sei porquê, um
vago, um supersticioso terror começou a en-
volver-nos. Minha mulher estava mortal-
mente pálida. De repente, olhei a jarra de
Darque que poisava sobre as pinturas do
tampo de harmonia, e — posso afirmar-to
sob minha palavra de honra — vi-a, vimo-la
MADRE ANA DOROTÉA 115
todos nós, como no instante da morte de
Madre Ana Dorotéa, à medida que as notas
se erguiam num timbre de guitarra dorida,
— orvalhar-se, transsudar, borbulhar, gotejar
em grossas bagas de água, suor de agonia ou
lágrimas de dòr, que tremiam, e scintilavam,
e escorriam uma a uma pelo vidrado da
faiança, diante dos nossos olhos dilatados
de assombro. Tivemos, nós todos, a impres-
são nítida de que a alma da pobre freira, es-
voaçando, palpitando à nossa volta, viera
chorar comnosco as suas saudades do mun-
do. Miss Kate Watson, trémula, fechou o
cravo. Minha mulher ticou doente. Desde
ontem, ninguém mais voltou à sala de mú-
sica.
E aqui tens porque eu, homem educado
nas coisas riais e positivas, acredito hoje
firmemente no sobrenatural. A culpa não é
dos factos; é nossa, que os não sabemos ex-
plicar. Por que não vens tu tomar uma chí-
cara de chá comigo e vêr a jarra de Madre
Ana Dorotéa?
Teu, do coração, — Enrique.»
UM PINTOR BRASILEIRO
Quando Enrique de Holanda me deu o
prazer de visitar-me na Inspecção das Biblio-
tecas para me mostrar o retrato desse
grande poeta que é Martins Fontes, acom-
panhava-o o ilustre pintor brasileiro Navarro
da Costa, que eu já de há muito admirava, e
que não tinha ainda a honra de conhecer.
Foi com sincero júbilo que lhe apertei a
mão. Navarro da Gosta é um amigo de Por-
tugal, cujas praias e cuja luz está fixando
nas suas marinhas, e tem por isso direito,
mais do que à nossa admiração, — ao nosso
comovido reconhecimento. Quando nessa oca-
sião nos encontrámos, ficou aprazada a mi-
nha visita ao seu atelier. Essa visita reali-
zou-se três dias depois, na luz tranquila e
doce do studio de Navarro, em Campo de Ou-
rique, e eu só posso felicitar-me pelo ense-
jo, que se me oferece agora, de transmitir
118 ESPADAS E ROSAS
as impressões produzidas no meu espírito
pela obra do moço plenarista, adorador fer-
voroso de Turner e de Mesdag.
Há, entre o tipo físico e a obra realisadade
alguns dos mestres da pintura portuguesa
contemporânea, uma singular e flagrante
analogia. Malhoa, o naturalista intenso, más-
culo, vibrante de seiva, de saúde e de côr,
que nos deu os Oleiros, a Romaria, os Bê-
bados, a Varanda dos Rouxinóis, é — conhe-
cem-no bem — um estremenho robusto, ale-
gre, viril, a quem ainda agora, na glória dos
seus cabelos brancos, ficariam bem o som-
breiro de veludo, a jaleca de astracan e as
esporas de ferro dos Marialvas. E Colum-
bano? Quanta semelhança existe entre a obra
genial deste sombrio analista de almas, Ve-
lasquez do crepúsculo, e a sua figura pe-
quena, pálida, taciturna, obscura, que pare-
ce caminhar, vacilante, na penumbra trá-
gica dos seus próprios quadros ! E Souza
Pinto? Não ó verdade que na elegância me-
ticulosa, pontual, um pouco fria do mestre,
está todo o exacto e escrupuloso parnasia-
nismo da sua pintura surpreendente? Com
o ilustre pintor brasileiro de quem me venho
ocupando, sucede precisamente o mesmo.
Nele, como em tantos outros, — a obra é o
homem. Meridional excitado, nervoso, irre-
UM PINTOR BRASILEIRO 119
quieto, repentista, lembrando um pouco, de
perfil, a cabeça leonina de Alexandre Braga,
Navarro da Costa tinha de ser na arte o que
realmente é na vida, — um improvisador bri-
lhante, impetuoso, veemente, um orador fo-
goso da côr, um retórico fremente da luz.
A sua pintura é uma forma sensual da sua
eloquência. Pinta com o mesmo brilho, a
mesma vivacidade, o mesmo dom de impro-
vização com que fala. Poucas vezes a pala-
vra «impressionismo», que Sérilles tão exacta-
mente definiu, se tem ajustado melhor ao
processo de um pintor. O que faz de Navarro
da Costa um intérprete maravilhoso do mar,
capaz de fixar e de reproduzir, com uma
verdade flagrante, efeitos de luz e de côr
que variam a cada momento, é precisamente
o seu génio repentista, a facilidade com que
vê, a intensidade com que sente, a rapidez
prodigiosa com que executa. Como todos os
pintores de visão rápida e de execução fulgu-
rante, o autor dos Rochedos ao sol, da Ca-
saria ao Sol, das Roupas ao Sol, das Arvo-
res doiradas, tinha de ser um apaixonado,
um deslumbrado das grandes claridades.
Tudo nos seus quadros esplende, scintila,
chameja, resplandece, — as toalhas fulvas de
areia, as transparências glaucas do mar, o
oiro sumptuoso das velas, o casco fenício e
120 ESPADAS E ROSAS
faúlhante dos barcos. «Le principal pcrson-
nage d'un tableau c'est la lumière», — disse o
grande Manet. O brasileiro Navarro da Cos-
ta, como o português Souza Lopes, como o
francês Besnard, como o italiano Segentini,
como o inglês Moore, como o austríaco Hans
Makart, revela-se, acima de tudo, um vir-
tuose da Juz. Na sua vasta teoria de águas e
de céus, realizada em Leça, na Foz, em
Carreiros, em Leixões, série admirável de
estudos, de manchas, de esquissos, de po-
chades, o que o moço mestre brasileiro amo-
rosamente pintou foi o sol, o incomparável
sol português, doirado, quente, dionisíaco,
criador, «gordo de luz», sol ideal para os
plenaristas, sol que se presta, como nenhum
outro, à «divisão dos tons para o aumento
da vibração» (H. Cochin), sol que faz pinto-
res, que educa pintores, e que Navarro da
Costa, descendente de portugueses, tem sa-
bido amar até ao êxtase, com uma devoção
verdadeiramente ancestral. O «lusitanismo»
do ilustre artista é, para mim, a nota mais
sensibilisadora da sua psicologia e da sua
obra. Não deixa por isso Navarro da Costa
de ser medularmente, fundamentalmente bra-
sileiro, — e de sentir o justo e soberbo orgu-
lho da pátria. As influências hereditárias, as
determinantes de raça que decidiram da sua
UM PINTOR BRASILEIRO 121
visão e da sua emoção estética, que criaram
no seu espírito o culto tradicionalmente por-
tuguês do mar, que alimentaram o seu vago
idealismo cristão, que lhe deram a eloquên-
cia vivaz e a força improvisadora, — não des-
nacionalizaram nem perturbaram o forte
americanismo da sua estrutura moral. Quan-
do saí do atelier do eminente pintor, onde
confortavelmente o fogão crepitava e uma
tapeçaria velha adormecia na sombra, não
pude deixar de pensar na influência que,
nas relações entre os povos, exerce esta es-
pécie gloriosa de embaixadores-artistas. No
dia em que Navarro da Costa expuzer, em
plena saison do Rio, a maravilhosa coleção
de marinhas portuguesas que leva na sua
bagagem, — estou certo de que os brasileiros,
perante o êxtase sagrado daquele mar, pe-
rante a bênção pagã daquele sol, hão-de, se
é possível, amar ainda mais Portugal.
PSICOLOGIA DA INGRATIDÃO
Em geral, como quási todos os sonhado-
res, eu não costumo sonhar. Parece, porém,
que o Pommery, loiro como um topázio, que
me deu ontem à ceia o meu amigo John
Barradas, não era excelente; o meu espírito
e o meu estômago suportaram mal o babil-
lage da mulher, para quem falar da vida dos
outros é uma maneira elegante de guardar
segredo da sua, — e o certo é que tive a noite
passada um pesadelo horrível, que me fez
pensar, quando acordei, na aflitiva história
dos cinco talentos de oiro de Anachreonte.
Conhecem o Visconde de *•«, roceiro de
S. Thomé, homem amável, oleoso, epicuris-
ta, espécie de rei-do-cacau, que, como o mi-
lionário do palácio Cleveland, ganha num se-
gundo de ociosidade o que eu ganho num
ano de trabalho? Pois bem. Eu sonhei que o
124 ESPADAS E ROSAS
Visconde de ***, com quem mantenho sim-
ples relações de cumprimento, me tinha pro-
curado no meu consultório para me oferecer
— sabem o quê? — uma casa. Nem mais nem
menos do que um pequeno palacete, jardim,
rés-do-chão, primeiro andar, estilo ingês, a
Buenos-Aires. Trouxera-me, com o seu me-
lhor sorriso, os títulos de propriedade. Que
desculpasse, que não me melindrasse com a
oferta, porque êle não tinha outra forma de
me testemunhar a sua consideração. E osci-
lava diante de mim, como um boneco chinês,
enorme, luzidio, solene, embrulhado num
desses fatos de quadrados pretos e brancos
que teem feito a fortuna dos alfaiates do
West End. Fiquei varado de assombro. Um
prédio ! Um palacete que passava a ser meu,
universalmente meu, — tão meu como o meu
relógio, como a minha consciência, como o
meu casaco ! Conheci pela primeira vez a
vertigem da -propriedade, e confesso que me
foi difícil — a-pesar dos recursos de imagina-
ção de que dispõe um homem que sonha — en-
contrar palavras de agradecimento que esti-
vessem nas proporções do presente recebi-
do. O Visconde de ***, que parecia saborear
voluptuosamente as expressões efusivas da
minha gratidão, poz na cabeça, com uma
sem-ceremónia que me chocou, o seu coco
PSICOLOGIA DA INGRATIDÃO 126
cinzento, tomou de cima de uma cadeira o
guarda-chuva em cujo punho lampejava uma
grande cabeça de cão, de prata macissa, e
disse-me, sorrindo sempre :
— Temos lá em baixo o automóvel. Quer
dar-se ao incómodo de vir vêr a sua nova
casa?
Fui. Cinco minutos depois, parava em
Buenos-Aires diante de um portão de jardim
que me fez lembrar os admiráveis ferros-for-
jados de Edgar Brandt. O portão abriu-se, o
automóvel subiu uma pequena alameda, en-
tre hemiciclos de rosas como no Moor Park
de Herfortshire, e eu vi um palacete cinzen-
to, inglês, de persianas verdes cerradas, que
me pareceu opulento de mais para poder ser
algum dia legitimamente meu. Um criado
velho, de casaca, assomou à porta. Era ali.
Apeei-me sob uma impressão desconcerta-
dora de absurdo e de maravilhoso. Percorri,
como um autómato, o pequeno hall, um sa-
lão Luiz XVI, verde-malva e oiro, com um
teto de Amores de Gustavo Jaulmes, uma
sala-de-música, um smoking -room árabe on-
de poderia ter fumado Loti, — e quando,
num crescendo de assombro, ia perguntar-
ão meu amigo Visconde se tudo aquilo
era efectivamente meu, êle estendeu-me as
mãos e disse-me, desaparecendo, como uma
12Q ESPADAS E ROSAS
mancha de xadrez preto e branco na penum-
bra doirada do hall:
— Meu caro amigo, deixo-o na sua casa.
Seja muito feliz.
Ele partiu, e eu fiquei, enterrado numa
poltrona da sala-de-bilhar, pensando — com
o terrível espírito de lógica com que às ve-
zes se pensa em sonhos — no singular acon-
tecimento que acabava de produzir-se na
minha existência. A princípio, a idéa de que
tudo aquilo me pertencia, deslumbrou-me.
Não vi senão o esplendor, a ostentação, o
conforto da minha nova residência, a possi-
bilidade de dar festas, de reunir os meus
amigos, de modificar os meus hábitos. Pouco
a pouco, porém, as primeiras impressões de
entusiasmo desvaneceram-se, e eu comecei
a reflectir seriamente na situação de depen-
dência em que a oferta do Visconde de ***
me colocava. Com efeito, era ao Visconde
de ***, á sua inesperada generosidade, que eu
ficava devendo a opulência da minha instala-
ção e o conforto da minha vida. Tinha, por con-
seguinte, de ser grato a esse homem, de ma-
nifestar-lhe a todos os instantes o meu re-
conhecimento, nos sorrisos, nas palavras,
nos actos, nas atitudes, de manter-me peran-
te êle na situação de um dependente perante
o seu bemfeitor. Toda a autonomia moral,
PSICOLOGIA DA INGRATIDÃO 1-7
que constituirá até então o orgulho do meu
espírito, desaparecia. Dali por diante, não
poderia deixar de atender, de receber a cada
hora o Visconde, de suportar-lhe todas as
impertinências, de prestar-lhe todos os fa-
vores, de sor.rir-lhe, de admirá-lo, porque
êle era o homem que me tinha dado a
casa. A sua sombra importuna ia projec-
tar-se sobre a minha existência, acompa-
nhar-me, perseguir-me para toda a parte,
pesar sobre mim como um fardo, como uma
obsessão implacável. Era um intruso que eu
admitia na intimidade da minha vida, e a
quem me via forçado a reconhecer, em nome
dos preconceitos da gratidão, o direito de
dispor de mim e da minha consciência, de
enervar-me, de constranger-me, de utilizar-
me, de manejar-me como um instrumento
dócil. Que remédio, — se êle era o homem
que me tinha dado a casa ? Que fazer, — se
eu tinha hipotecado a minha independência
moral, aceitando o presente mais inofensivo
do mundo? O Visconde de ***, com o seu
casaco escossês, a sua face lustrosa, o cão
de prata do seu guarda-chuva, apareceu-me,
um momento, como o símbolo da generosi-
dade que oprime, do favor que escravisa, da
gratidão que vexa. Achei caro de mais o
preço desse palácio que não me custava di-
128 ESPADAS E ROSAS
nheiro. Fumei um cigarro, meditei um ins-
tante. De repente, levantei-me da poltrona,
puz o chapéu na cabeça, atravessei o jardim,
embalado ainda no perfume das rosas, e,
daí a um quarto de hora contado pelo reló-
gio, estava em casa do Visconde a resti-
tuir-lhe os títulos de propriedade da casa
que êle me oferecera.
— Então porque não aceita o meu pre-
sente ?
— Não posso.
— Porquê ?
— Porque não sou bastante seu amigo,
meu caro senhor, para lhe fazer o enorme
favor de lhe ficar sendo grato.
A BATALHA DE LAVENTIE
Um oficial vindo do front acaba de contar-
me alguns episódios da batalha de Laventie,
em que, na manhã de 9 de abril, três briga-
das portuguesas se cobriram de glória, pre-
ferindo morrer a render-se. Um desses epi-
sódios — página refulgente de uma epopeia de
humildes — fez-me vibrar de comoção. As-
sim eu pudesse, ao reproduzi-lo aqui, comu-
nicar às minhas palavras a grandiosa sim-
plicidade, a candura heróica, o ingénuo en-
tusiasmo com que o moço oficial mo contou,
chorando !
Eram 4 horas da madrugada quando o
bombardeamento começou sobre o sector La-
ventie-Richebourg, ocupado por três briga-
das portuguesas da 2. a divisão. O tenente •*•,
que estava convalescente numa casa da pe-
quena povoação de La Gouture, perto dos
apoios do batalhão do 13, resolveu regressar
9
130 ESPADAS E ROSAS
às trincheiras e apresentar-se na sua uni-
dade. Como um oficial do estado-maior, que
passava num Hudson do quartel-general, se
oferecesse para o conduzir, o tenente ***
chamou o impedido, um verdadeiro «serra-
no» das montanhas ásperas de Trás-os-Mon-
tes, rapaz espadaúdo, alegre, tisnado do sol,
entregou-lhe as malas, recomendou-lhe que
as guardasse bem, e ao subir para o auto-
móvel que ia levá-lo àquele «enfer de boue
et de sang», de que fala Barbusse, gritou-lhe
ainda, enfiando a tiracolo o saco da máscara
anti-gaz:
. — Não saias daqui até à minha volta, ou-
viste?
— Sim, meu tenente.
— Haja o que houver!
— Não tem dúvida, meu tenente.
Era noite ainda. Os very-lights cortavam,
como relâmpagos, a escuridão nevoenta do
céu. A nossa artilharia — o admirável 75 —
começava já a responder. Pela sua intensi-
dade, o bombardeamento inimigo parecia a
preparação de uma ofensiva formidável. Trinta
mil granadas carregadas de gazes asfixian-
tes caíram, em três horas, sobre as trin-
cheiras portuguesas; tornaram irrespirável a
profundidade dos dug-outs; fizerarcf coalhar
sobre aquele rincão da Flandres, ainda on-
A BATALHA DE LAVBNTIB 131
'.em doirado de vinhedos pagãos, uma atmos-
fera de- veneno e de morte. A's 7 horas, a
primeira vaga de assalto, uma divisão báva-
ra inteira, era aniquilada pelo fogo das me-
tralhadoras. Novas divisões — quatro ao todo
— se lançaram, umas atrás das outras, so-
bre as nossas linhas. O centro, constituído
pelas três brigadas portuguesas, resistiu ao
choque; mas a ala direita, canadiana, e a ala
esquerda, escossesa, foram rotas; o inimigo,
protegido pelo nevoeiro, atacou de flanco; e
os nossos nove mil homens, envolvidos por
forças dez vezes superiores em número, com
as comunicações cortadas por uma infernal
barragem de fogo, tiveram de escolher, num
instante supremo de decisão, entre a vergo-
nha de entregar-se e a glória de morrer.
Esgotaram as munições; encravaram as me-
tralhadoras; quando já não tinham balas nem
granadas, atiraram pedras, — e por fim, numa
vertigem de suicídio, ensanguentados, estro-
piados, loucos, negros de lama e de pólvora,
precipitaram-se à baioneta sobre os alemães,
gritando, uivando, cantando. Uma vez mais,
nos restos da neblina que se dissipava, como
em Wagram, como em Salamanca, como em
Smolensko, as baionetas portuguesas res-
plandeceram ao sol da Europa. Emquanto a
nossa artilharia, troando sempre, a-pesar de
132 ESPADAS E ROSAS
já rota a primeira linha, varejava quâsi à
queima-roupa o inimigo, — os batalhões do 2,
de Lisboa, do 13, de Vila Rial, do 15, de
Tomar, do 17, de Beja, vendendo cara a vida,
abriam clareiras de sangue nas vagas alemãs
de assalto, batiam-se corpo-a-corpo, à arma
branca, a soco, à dentada, a ponta-pé, como
doidos, como leões. A' frente do 2, o capitão
Roma, rouco como um tambor rebentado na
carga, gritava, abatendo alemães à coronha-
da : — «Rapazes, é preciso morrer bem !» E
eles obedeciam, no orgulho de se fazer mas-
sacrar, abriam navalhas quando a baioneta
lhes voava das mãos, brandiam as espingar-
das como varapaus, — dir-se-ía que sobre a
planície de Laventie soprava, três séculos de-
pois, o vento épico de Alcácer. A's 3 da tarde,
os valentes batalhões portugueses combatiam
ainda, dizimados, esfarrapados, gazeados,
sangrentos. A's 4 horas, algumas companhias
retiravam sob a metralha inimiga, para se
reconstituírem na rectaguarda. O moço te-
nente • #*, que me contava os pormenores do
combate com as lágrimas nos olhos, viu,
perto dele, um capitão do 15 meter uma bala
na cabeça para não cair vivo em poder dos
alemães; conseguiu juntar-se, com vinte dos
seus homens, a uma meia-brigada escossesa;
bateu-se ainda toda a tarde c toda a noite,—
A BATALHA DE LAVENTIE 133
e na madrugada seguinte, extenuado, ex-
austo, lembrando-se do impedido que tinha
deixado com as malas na pequena povoação
francesa, aproveitou uma ambulància-auto-
móvel que passava a busca de feridos, e se-
guiu para La Couture. Quando chegou, o
coração confrangeu-se-lhe de mágua. Não
havia uma única casa em pé. A risonha al-
deia, devorada pelo incêndio, era um montão
de escombros. Numa ravina crispavam-se
animais mortos. A terra, revolvida pelas
granadas alemãs, abria-se em escavações
enormes, palpitantes, donde parecia erguer-
se o fumo das últimas explosões. O pobre
soldado ficara, decerto, sepultado ali. ofi-
cial ia procurar dois pedaços de madeira,
para lhe deixar, naquele imenso cemitério,
a sombra de uma cruz, quando, de súbito, do
vão de duas impostas de alvenaria chamus-
cada, uma voz bradou:
— Pronto, meu tenente !
Era o impedido. Pálido como a morto,
mal podendo ter-se em pé, um trapo branco
manchado de sangue a apertar-lhe a cabeça,
avançou para o oficial, deixou tombar as malas
que segurava nas mãos convulsas, e, cum-
prido com fidelidade heróica o serviço
que lhe fora ordenado, caiu redondamente,
morto.
O BISPO DO PORTO
Tive a honra de conhecer pessoalmente o
nobre prelado que, perante a comovida vene-
ração do povo que pastoreava, acaba de ex-
tinguir-se, com a consciência de um justo e a
tranquilidade de um santo, na sua pobre al-
cova do paço de Sacais. Duas vezes apenas
lhe falei : e, de ambas, para receber do emi-
nente antístite, cujo nome, desde hoje, ful-
gura na história do episcopado português,
demonstrações cativantes de afecto, de distin-
ção e de benevolência. Venho hoje pagar à
sua memória a minha obscura dívida de gra-
tidão, descobrindo-me respeitosamente pe-
rante o cadáver de um homem que, mais
ainda do que pelos esplendores do báculo,
foi grande pela bondade, pela modéstia e pela
virtude.
Vi pela primeira vez o sr. D. António
Barroso em junho de 1910. Encontrava-me
136 ESPADAS E ROSAS
na capital do norte, de passagem para as
Pedras-Salgadas, quando um amigo comum,
o malogrado Firmino Pereira, me procurou
apressadamente no hotel para me transmitir
estas palavras do bondoso prelado: — «Diga
ao Júlio Dantas que o Bispo do Porto gosta-
va de conhecer o autor da Ceia dos Car-
deais.» Não quiz demorar, nem um momento
mais, a minha visita ao paço episcopal. Re-
cordo-me da impressão que produziu no
meu espírito a travessia do velho burgo do
Porto, onde parecia palpitar ainda a alma
bárbara do século xii, com a sua Sé coroa-
da de ameias como uma fortaleza, as suas
betesgas estreitas e calçadas de lajedo ro-
mano, os seus fortes botaréus doirados de
mugre e coalhados de sombras, cujas pedras
sagradas teriam conhecido ainda — quem sa-
be? — os bispos-soldados que sabiam matar
pela glória de Deus e os burgueses subli-
mes que souberam morrer pela liberdade do
povo. Foi com a alma penetrada da emoção
do passado que entrei na sala do paço epis-
copal onde me esperava, cheio de acolhedora
bonomia, o sr. D. António Barroso. «L'âme
des vioants — disse Gustavo Le Bon — est
faite surtout de la pensée des morts.» Diante
daquele homem, elevada personificação da
autoridade espiritual da Igreja, figura rude
O BISPO DO PORTO 137
de bispo missionário, que tanto lembrava
nos olhos vivíssimos, nos largos malares,
na barba negra revolta, a velhice profética
de Tolstoí, e que me recebia (estávamos nas
oitavas de S. Pedro e S. Paulo) embrulhado
na sua murça e na sua batina doméstica de
camelão roxo, — senti que alguma coisa de
inconsciente, de hereditário, de ancestral,
mais do que a consideração de uma simples
cortezia, me obrigava a dobrar o joelho e a
beijar-lhe a mão. Conversámos largamente.
Emquanto o venerando prelado, numa sin-
gela e risonha familiaridade, me falava das
suas antigas missões, do seu seminário, da
bondade do seu povo, das obras de assistên-
cia a realizar na sua diocese, e levava a ge-
nerosa benevolência do seu espírito até ao
ponto de ocupar-se de mim, da minha saúde,
dos meus trabalhos, das notícias particula-
res que recebera acerca da representação
recente da Ceia dos Cardeais em Roma, —
eu observava-o, seguia-lhe os movimentos,
admirava a vivacidade dos seus sessenta
anos robustos, analisava a sua fisionomia
um pouco dura, o seu olhar inquieto, as suas
mãos finas e bem tratadas que um vago tre-
mor agitava sempre, o seu tipo viril de poppe
russo sob a mancha de seda violeta do soli-
déu, e pensava comigo, olhando a fronte ao
138 ESPADAS E ROSAS
mesmo tempo amorosa e enérgica desse
evangelisador admirável, que um novo bispo
D. Frei Marcos, exaltado na bondade, infle-
xível na disciplina, viera sentar-se no sólio
prelatício do Porto. Antes de me retirar, o
sr. D. António quiz que eu visitasse o paço.
Assomámos a uma janela para vêr, lá em
baixo, no Doiro faiscante de sol, a linha fe-
nícia dos barcos rabelos subindo o rio. Quan-
do, depois de atravessar as salas nobres da
residência episcopal, quadras de opulenta
fábrica seiscentista, com os seus tetos doi-
rados em caixotões, as suas velhas pinturas,
os seus silhares altos de azulejo, chegámos
à pobríssima alcova onde dormia o Bispo do
Porto, à sua humilde cama de ferro coberta
de chita, à sua tosca mesa onde havia ape-
nas uma cruz e a Imitação de Cristo, os
olhos, sem querer, turvaram-se-me de lá-
grimas, a figura angélica de Frei Bartolomeu
dos Mártires resplandeceu diante de mim, e,
talvez pela primeira vez na minha vida, eu
apreendi, em toda a sua pura e tocante bele-
za, a sublimidade do pensamento cristão.
Como o poder da Igreja seria ainda hoje for-
midável, se se medissem por esta craveira
moral todos os seus ministros !
Passaram-se, depois disto, oito anos de
duras provações para o virtuoso prelado. Só
O BISPO DO PORTO 139
voltei a vê-lo em fevereiro deste ano, quan-
do, a convite do eminente professor e meu
querido amigo, Bento Carqueja, tive a honra
de pronunciar um discurso na festa do Ate-
neu Comercial. O sr. D. António Barroso
que naquele meio tempo tinha conhecido a
prisão, o exílio e o infortúnio, encontrava-se
de novo á frente da sua diocese e presidia,
como o primeiro cidadão do Porto, a essa
festa de instrução e de caridade. Já não era
o mesmo homem. A velhice trabalhara pro-
fundamente aquele organismo robusto, mi-
nado pela artério-esclerose e pelos abalos mo-
rais ; a sua rude barba negra de mujik em-
branquecera; tremiam-lhe mais as mãos; e
uma palidez de ascese, metalisada pelas pas-
tadas de oiro da luz, parecia espiritualizar a
dureza plebeia da sua expressão, dando-nos
a impressão perturbadora de que o Júlio II
da grandiosa pintura de Rafael descera da
galeria Pitti de Florença. Foi então que o ou-
vi falar pela primeira vez. Iluminava-se,
transfigurava-se. Tinha a eloquência chã,
persuasiva e veemente do missionário. A sua
palavra, como diria Hanotaux, era uma con-
vicção em marcha. Prolongava estridente-
mente a última sílaba de cada frase, fazen-
do-a vibrar como um clarim. Os seus efeitos
oratórios, de uma singeleza dominadora, im-
140 ESPADAS K ROSAS
pressionavam. Lembrar-me-hei sempre das
palavras generosas que a minha pobre alo-
cução mereceu ao velho prelado. Nunca
esquecerei o enternecedor telegrama que êle
enviou, nessa hora, a minha mãe. E porque
sou fiel aos sentimentos da gratidão, e por-
que considero a figura do Bispo do Porto,
pelo seu alto relevo moral, o melhor exem-
plo que pode hoje apontar-se a uma socie-
dade sem virtudes e sem carácter, — beijo de
longe, comovido, a sua mão inerte, e faço
votos para que as últimas palavras de amor
e de perdão pronunciadas por essa nobre e
serena consciência, possam ainda um dia,
como um fogo redentor, destruir a semente
maldita do ódio no coração de todos os portu-
gueses.
DEGENERADOS
Ontem, durante o almoço que me ofere-
ceu, na sua casa do Alto-Estoril, o meu ami-
go Lencastre, debateu-se, no mais profun-
do da minha consciência, um problema con-
frangedor.
Havia quinze anos que eu não via esse ex-
celente rapaz, de um tão inconfundível tipo
de fim-de-raça, em cuja elegância seca, ner-
vosa e loira se adivinhava a fatalidade das
aristocracias que degeneram. Encontrei-o
no Estoril, «entre o verde filosófico dos pi-
nheiros», como êle próprio me disse, — e es-
tranhei a sua velhice prematura, o seu luto
recente, a sua expressão dolorosa e fatiga-
da. Casara com uma prima co-irmã, filha
dos Condes de ***, e morrera-lhe, quinze
dias antes, o terceiro filho. Como eu lhe di-
rigisse uma vaga palavra de conforto e de
simpatia, murmurou, brincando com o anel
142 espadas E Rosas
de armas, as lágrimas a tremerem-lhe nos
olhos :
— Foi melhor assim. Tinha nascido cego.
Conversámos largamente, no terraço do
Casino, olhando o mar. Quiz que eu conhe-
cesse a mulher e a filhinha que lhe restava.
Não me deixou sem que lhe prometesse que
ia almoçar com êle na manhã seguinte. A
scintilação da atmosfera parecia ferir-lhe a
vista. Notei que lhe tremiam as mãos ao en-
rolar um cigarro. Uma palidez azulada,
vítrea, inquietante, dava-lhe o aspecto de
certos nevro-brigticos, produtos da here-
ditariedade acumulada e da intoxicação pro-
gressiva de muitas gerações. Despedimo-nos.
No dia imediato — ontem — fiel à minha
promessa, fui almoçar com o meu amigo Len-
castre. Recebeu-me no seu dining-room ho-
landês, onde lampejavam pratas. Apresen-
tou-me a mulher, uma criatura loira, deli-
cada, frustre, linfóide, com uma grande tes-
ta olímpica como certas Virgens alemãs de
Lucas Cranach, umas ancas escorridas, um
peito chato de rapaz, o tipo doentio familiar
de certo ramo dos Albuquerques — «em cam-
po vermelho dois cardos verdes floridos, al-
cachofrados de oiro» — e essa sombra quási
física de melancolia que pesa sobre as pál-
pebras de todas as mulheres que fizeram
DEGENERADOS \Í3
quarenta anos. Quando nos assentámos á
mesa do almoço, com as janelas abertas sô-
bre uma gigantesca magnólia coberta de
tlor, uma criada trouxe pela mão uma crian-
ça. Era a filha sobrevivente desse casal de
degenerados que, por cada berço que abria,
fechava um túmulo. Beijei a pequenita, fa-
lei-lhe, assentei-a sobre os joelhos. A pobre
criança encarou-me, espantada, silenciosa,
fixou em mim os grandes olhos redondos e
tristes, franziu a sua face de velha num sor-
riso de hebetude que me gelou, e quando eu
insistia para que ela me dissesse como se
chamava, foi a mãe que acudiu, de olhos
baixos, como se confessasse uma vergonha:
— E' surda-muda...
Ouvi, impressionado, a história dessa des-
cendência condenada ao sofrimento e à ex-
tinção prematura. Dois filhos nado-mortos;
outro hidrocéfalo, cego, morto de convul-
sões ; essa pobre surda-muda, produto ca-
racterístico de uma consanguinidade mórbida
implacável, — o que eram senão pequeninos
mártires que a inconsciência pavorosa dos
pais gerara e criara para sofrer? Emquan-
to se servia o almoço, entre Japão velho e
flores, nessa encantadora sala que parecia
um interior de Pieter Hooch, o doloroso pro-
blema do casamento dos doentes e dos dege-
144 ESPADAS E ROSAS
nerados debateu-se no meu espírito. Diante
do espectáculo confrangedor daquela família,
desfizeram-se-me todas as dúvidas, todos os
escrúpulos sentimentais. A' questão posta na
minha consciência, — respondi pela negativa.
Não ; não pode reconhecer-se a um enfermo,
a um degenerado, a um débil, a um intoxi-
cado grave o direito de perpetuar o seu so-
frimento, a sua deformidade e a sua miséria.
A gerarão actual tem obrigação de defender
as gerações futuras. Criar a dôr é um crime
perante a humanidade ; criar a monstruosida-
de é um crime perante a raça. O casamento
dos doentes de espírito e de corpo, dos mons-
tríparos, dos cacoplastas, dos tarados, dos ge-
radores de abortos e de mártires, — deve ser
proibido, ou, pelo menos, não deve ser sancio-
nado pela lei. Todos os enfermos reconhecida-
mente capazes de transmitir taras graves e
permanentes à descendência, teem de ser ex-
cluídos do direito de constituir família. Será
brutal ; mas é necessário. Quando, há vinte
ou vinte e cinco anos, na Alemanha com He-
gar, na Áustria com Haskovec, na França
com Jullien, com Pinard, com Fournier, com
Ca/.alis, foi pela primeira vez discutida a
questão do exame médico pré-nupcial, do bil-
let de santé, — a susceptibilidade dos nossos
pais escandalisou-se. Pois quê? Os médicos^
DEGENERADOS 145
os higienistas, os puericultores tinham a au-
dácia de tratar criaturas humanas como ani-
mais domésticos ? Podia admitir-se, porven-
tura, que se seleccionasse o homem pelo pro-
cesso degradante porque se apuram as ra-
ças cavalares ? Que se ultrajasse a dignidade
da espécie? Que se violasse o mistério sagrado
do nascimento? Apenas frases, que hoje,
vinte anos depois, já soam falso. Não há ra-
zões de carácter religioso ou de carácter mo-
ral que valham a razão suprema da protec-
ção, da salvação das humanidades futuras.
Reconheço ao amor o direito esplêndido de
procriar a força, a beleza e a inteligência;
— mas não lhe reconheço o direito funesto
de gerar deliberadamente a miséria, o alei-
jão e a dôr. Isolam-se os indivíduos consi-
derados perigosos para a sociedade; devem
isolar-se também os indivíduos considerados
perigosos para a raça. Há quem, posta a
questão no terreno da sentimentalidade, jul-
gue isto demasiado cruel. Será. Convenho
que é uma atrocidade roubar aos degenera-
dos, aos fracos, aos doentes, a única conso-
lação que lhes resta na vida, —a de poderem
amar-se, unir-se, amparar-se, construir, sob
a protecção da lei divina e humana, a sua fe-
licidade e o seu lar. Mas não é uma atroci-
dade maior ainda, obter essa felicidade à custa
10
146 ESPADAS E ROSAS
do martírio de pequenos entes que não são
culpados de ter nascido, e que vêem ao mundo
apenas para expiar, entre os suplícios mais
horríveis, o beijo egoísta e criminoso dos pais?
Há quem objecte que a proibição do direito
ao casamento é um atentado contra a liber-
dade individual. Mas não é das liberdades de
todos nós que os Estados e as sociedades se
alimentam ? Também o direito à vida é um di-
reito fundamental, — e os Estados estão fa-
zendo correr, numa guerra hedionda, o san-
gue dos seus filhos. Qual será a violência,
qual será a tirania maior, — proibir os débeis
e os enfermos de se casarem, ou mandar os
homens sãos e fortes morrer na guerra? Se
aceitamos uma, — porque não havemos de
aceitar a outra, mil vezes mais generosa e
mais humana?
O almoço correu moroso e triste. Entre-
tivemo-nos a vêr, na parede, um Delft do
século xvii. Uma luz doirada de outono pa-
recia envolver numa auréola de martírio a
cabeça da pobre criança. Quando passámos
para a sala de fumar, o meu amigo Lencas-
tre perguntou-me:
— Que dizes tu da minha filha?
— Digo-te que nasceu providèncialmente
muda, para não blasfemar contra Deus e
contra ti !
O PAÇO DE MORO USOS
Quem visitar a pequena freguezia de Vila
Nune, em terras de Basto, e dos socalcos da
beira-Tâmega galgar ao alto do monte da
Rasa, daí, pela pedra da Cunha, correr a
lomba da serra da Espiga, em cujos baldios
o gado apascòa, e descer depois, outra vez,
até ao rio, encontra, aqui e além, mas sobre-
tudo ao norte, nos maninhos da serra, ves-
tígios de um muro — mais velho do que a mo-
narquia — que noutro tempo cintou, no cari-
nhoso abraço da sua alvenaria grosseira, a
antiquíssima herdade de Morousós. Pois,
minhas queridas leitoras, — esse muro é um
monumento de amor. Não foram os lozões, as
marras, as lurias dos alvanéis descidos de
S. Miguel de Refóios que o construíram pedra
a pedra, tijolo a tijolo: quem verdadeiramente
o levantou, tão forte, que oito séculos não
puderam destruí-lo ainda, foi um amoroso,
148 ESPADAS E ROSAS
um frágil, um pequenino coração de mu-
lher.
Eu lhes conto, como ma contaram, a his-
tória do velho paço de Morousós. Pergun-
tem por ela em Cabeceiras, em Atei, em
Mondim: ainda ninguém a escreveu, e todos
a repetirão pela mesma forma, com o mesmo
respeito ingénuo e tradicional, — a voz dos
eruditos na lareira nobre dos solares, a voz
do povo na sombra roxa das carvalheiras
que viram nascer D. Dinis.
Pelos fins do século xi, princípios do sé-
culo xii, a filha de um rico-homem, senhor de
Murça, namorou-se de um escudeiro do pai.
Chamava-se Dona Brfzula e devia ser bela,
— porque são belas todas as mulheres que
amam com paixão. Esconderam o seu amor,
emquanto puderam. Um dia, porém, o senhor
de Murça soube da drudaria (como se dizia
então) da filha com o escudeiro; para salvar
a vida, o pobre moço teve de fugir pela serra,
em demanda do convento de Refóios, onde
lhe dariam abrigo; Dona Brízula, prevenida
da fuga e do destino de Nuno, aproveitou o
sono do pai, mandou entrouxar por criados
fiéis, em silêncio, jóias, roupas, vestidos,
todo o esplendor dos seus tirazes mudejares,
das suas alfolas, dos seus ciclatões bizantinos
pesados de oiro, carregou quatro azêmolas,
O PAÇO DE MOROUSÓS 149
e, acavalo numa sela galega de fustes, acom-
panhada do beneditino seu capelão, partiu
como doida, pela escuridão da noite, no rasto
do homem a quem dera o corpo do seu corpo
e a alma da sua alma. Encontrou-o nas terras
de Vila Pouca de Aguiar, e aí lhes lançou o
frade a bênção de Deus. Temendo o furor e
a perseguição paterna, ganharam o Tâmega;
atravessaram o rio nas alpondras de Parada
de Monteiros; e daí, seguindo pela riba, ao
correr da água, foram parar a um sítio ermo,
silvestre, abrigado dos ventos do norte pelo
espinhaço da serra da Espiga, — logar que
Dona Brízula e o escudeiro, abençoados pela
sombra comovida de Frei Ordonho Martins,
julgaram bastante só e bastante vasto para
nele caber todo o amor do seu coração. Não
podiam ficar ali emquanto não fosse doado o
reguengo, murada a terra, construído o paço.
Os padres de Refóios albergaram-nos numas
casas, a-par do mosteiro; a obra dos alvanéis
começou, paga pelos sacos pojados de mora-
bitinos de oiro que Dona Brízula Teixeira
trouxera comsigo de Murça, — e, terminada
ela, ali esconderam os fugitivos, longe do
mundo e dos homens, isolados na mão de
Deus, os arroubos da sua paixão, o enlevo
da sua ternura, as lágrimas da sua felicida-
de. Eremitas de amor^ ninguém mais os per-
150 ESPADAS B ROSAS
turbou naquele refúgio onde viveram, ama-
ram e envelheceram tão entregues um ao
outro, tão absorvidos no seu afecto, tão ven-
turosamente sozinhos, — que o povo ficou
conhecendo, daí por diante, o paço da riba
Tâmega pelo carinhoso nome de «paço dos
Morousós».
Hoje, que resta dele? Apenas uns muros,
um nome e uma história de amor. A partir
de 1486, data em que uma descendente de
Dona Brízula, Mónica Teixeira, casou com
António Machado, filho de um fidalgo de D.
Afonso V, senhor da terra de Entre-Homem-
e-Cávado, a família deixou a sua velha resi-
dência, já quatro vezes secular, e foi viver
para o solar da Granja, em Cabeceiras de
Basto. A terra reguenga mandada murar, no
século xii, pela amorosa filha do senhor de
Murça, constitúe agora a área da pequena
freguezia de Vila-Nune, — a «vila de Nuno».
A quinta de Morousós, que hoje apenas
ocupa uma parte do antigo cerrado medievo,
ainda se encontra na posse da família da sua
fundadora, cuja actual representante, a ilus-
tre senhora D. Sofia Adelaide Teixeira Ma-
chado Tavares, casou em 1885, na freguezia
de Vila-Nune, a que deu o nome o seu arqui-
avô, com o dr. António Teixeira Coelho de
Vasconcelos, da nobre casa de Côrtinhas, es-
O PAÇO DE MOROUSÓS 151
pírito de elevada cultura e de primorosa gen-
tileza, a quem devo as informações que me
serviram para escrever estas páginas.
A história de Brízula Teixeira, cujo es-
pectro, erguido sobre as suas osas doiradas
de rica-dona, enche ainda de poesia as terras
de Basto, ensina-nos, a todos nós, uma gran-
de verdade: quem encontrar na vida o ver-
dadeiro amor, deve escondê-lo, longe do
mundo, como um tesouro.
UMA RAINHA
Há pouco, diante dos belos panos de Ar-
ras do paço da Ajuda, recordei o dia em que
pela primeira vez — faz agora precisamente
doze anos — entrei no palácio rial que, mercê
da sua sumptuosidade, foi, até ao fim da
existência, a habitação preferida da rainha
Maria Pia.
Havia muito tempo que eu desejava vêr
um quadro comprado pelo monarca a D.
Tomás de Melo, atribúido a Rubens pelos
conhecedores de arte, e colocado — por sinal
detestávelmente — na sala dos frescos do
paço da Ajuda. Pedi, por intermédio do coro-
nel Benjamim Pinto, veador da Rainha, a au-
torização necessária para visitar o palácio,
e, obtida ela, num dia de sol criador, puz-
me a caminho dessa «fria e inabitável massa
de pedra sem passado nem presente», como,
num magnífico desdém de estrangeiro, lhe
154 ESPADAS E ROSAS
chamou o príncipe de Lichnowski. Lembro-
me ainda da impressão que produziu no meu
espírito a opulenta série de salas do andar
nobre, cheia de interesse a-pesar da sua gra-
ve e severa monotonia pombalina. Atravessei
a sala chinesa, com as suas portas de xarão
vermelho e oiro; a sala do corpo-diplomático;
a sala das damas, onde vi, penetrado da mes-
ma exquisita elegância da Dama da Luva, o
retrato da rainha Maria Pia por Carolus Du-
ran, e onde, pojando de talha doirada, esplen-
dia a soberba mobília da náu D. João VI,
cadeiras, canapés, sofás com os espaldares
apainelados de maravilhosas pinturas de ba-
talhas navais; a sala dos panos de Arras,
vindos de Vila-Viçosa; a sala dos panos de
armas, onde encontrei ainda, nas paredes e
nas guarda-portas, o brazão dos Távoras
mal escondido sob as armas da casa de Bra-
gança; o studio gótico, com o seu lustre de
ferro-forjado, os seus entalhados de Leandro
Braga, a harpa e o órgão do rei D. Luís ; a
sala do trono; a sumptuosa sala da ceia; a
capela, cuja galeria doirada Costigan descre-
veu, coalhada de fardas e de gran-cruzes,
no dia do casamento do conde de Oeynhau-
sen; e, por último, a sala dos frescos, inte-
ressante no conjunto, lamentável no detalhe,
onde um mau retrato de D. João IV me fez
UMA RAINHA 155
sorrir e onde, finalmente, pude admirar o
célebre Rubens que uma expertise amicale
avaliara em vinte contos. Feito o exame que
me interessava, dispunha-me a sair do palá-
cio, quando o veador de serviço me comuni-
cou que Sua Majestade se dignava receber-
me. Descemos ao rés-do-chão, onde vivia a
Rainha. Quando chegámos à sala de mármo-
re, de uma frescura deliciosa, a marquesa de
Unhão, que escrevia junto da janela, sentada
a uma pequena secretária Luís XVI, disse-
nos que a senhora D. Maria Pia se demorava
ainda uns minutos e que me receberia na sala
azul. Era a sala contígua, à esquerda. Ben-
jamim Pinto, um cicerone conversador, apro-
veitou o ensejo para me mostrar o interes-
sante grupo de salas da direita, durante
muito tempo preferidas e agora abandona-
das pelo humor caprichoso da Rainha, — a
sala de Saxe, um gabinete pequeno onde
havia um biombo feito dos restos da talha
doirada de um coche, e a sala cor de rosa.
Quantas vezes eu ouvira falar da sala de
Saxe, que esplendor a minha imaginação fá-
cil emprestara a essa fantasia de príncipe
alemão, — e com que desapontamento eu me
encontrei num boudoir de detestável estilo
Luís Filipe, cadeiras, espelhos, credencias,
escrevaninhas cobertas de flores, de araras,
156 ESPADAS E ROSAS
de papagaios de porcelana, onde só havia de
notável dois candelabros saxónios da al-
tura de um homem e o livro de mosaico de
Veneza que o povo italiano oferecera, em
1862, á rainha Maria Pia! Entrámos ainda
no estreitíssimo compartimento, quási um
cubículo, de que o rei D. Luís fazia quarto
de dormir, e que tinha, para a sua verde- ve-
lhice de D. Juan, a única vantagem da comu-
nicação fácil com o exterior pela sala dos
alabardeiros. Quando Benjamim Pinto me
contava, a propósito, os últimos dias de ago-
nia do monarca na cidadela de Cascais, des-
fazendo-se aos pedaços no horror de uma
sífilis terciária visceral, entre o seu violon-
celo, que tocou quási até à hora da morte,
e um telefone a que falava convulsivamente
de cinco em cinco minutos, — um criado do
paço, solícito, veio prevenir-nos, nos bicos
dos pés:
— A senhora marquesa manda dizer que
Sua Majestade já está na sala azul.
Poucos minutos depois, eu era introduzi-
do junto da Rainha. Lembro-me, como se
tosse hoje, da mão ruiva, decrépita, translú-
cida, vagamente felpuda, eriçada de jóias e
de veias azuis, que nessa hora se estendeu
ao meu beijo respeitoso. Tinha diante de mim,
na sua precoce e majestosa senilidade, a fi-
UMA RAINHA 157
lha de Vitor Manuel, uma das mais ilustres
princesas da estirpe de Sabóia-Carignan,
herdeira da beleza expressiva e profunda da
tia-avó princesa de Lamballe, cujo sorriso
lembrava o da «Virgem Doirada» de Amiens,
e de que os acasos da política dinástica ha-
viam feito, aos 15 anos incompletos, rainha
de Portugal. Estava sentada num sofá, ro-
deada de almofadas, de biombos e de fogões
acesos, encolhida, crispada pelo pavor cons-
tante do frio e das correntes de ar, um amplo
luto de veludo roxo a envolvê-la como uma
capa episcopal, as cordoveias do pescoço
afogadas em pérolas, a mancha côr de ferru-
gem dos cabelos desfiando-se, alastrando,
scintilando na poeira luminosa da sala. Em-
quanto ela me falou confusamente de mim e
dos meus livros, observei-a, feição a feição,
gesto a gesto. Naquela sombra, naquele es-
pectro de uma grande mulher, nem tudo esta-
va morto ainda. A face, descaída, empapara-
se; a pele, árida, pulverulenta, sem um veio
de sangue e de vida, parecia recoberta de uma
lanugem ruiva, como um velho lichen: mas,
nessa ruína pavorosa, uns olhos magníficos
de italiana brilhavam ainda, e uma boca sub-
til, expressiva, inteligente, onde não havia
vestígios do lábio austríaco da mãe e da irmã
condessa de Moncaliéri, uma boca olímpica
158 ESPADAS E ROSAS
de deusa latina, uma boca misteriosa de Gio-
conda rasgava-se, palpitava, sorria com a
majestosa graça de Juno falando aos seus
pavões. Aquela boca e aqueles olhos tinham
ainda vinte anos. Foi, vendo-os, que abrangi,
que compreendi todo o drama íntimo da ex-
celsa princesa; os longos dias de tédio do
seu noivado, no paço de Cintra, entretendo-
se a atirar jóias que as açafatas disputavam
lutando sobre os tapetes; a dolorosa can-
dura com que ela, uma criança ainda, escre-
via com o anel nas vidraças do palácio —
«Não gosto do Luís... Não gosto do Luís... » — ,
todo o enervamento da sua mocidade sem
afectos, da sua realeza sem esplendor, da sua
dissipação sem grandeza, neurastenisando-a,
adoecendo-a, conduzindo-a a uma velhice
cheia de insónias e de pavores, de alucina-
ções e de desordens nervosas, tão horríveis,
íjue as criadas tinham de ficar velando de
noite junto do seu leito, e que o próprio con-
tacto da roupa lhe dava a impressão de que
lhe estendiam sobre o corpo um lençol de ne-
ve. Conversámos largo tempo. Falei-lhe do
lenitivo que a prática de uma incomparável
caridade trouxera á sua existência gasta em
fazer o bem. Respondeu-me com a frase de
Maria Leczinska: «La misericorde des róis
est d'exercer la justice; et la justice des rei-
UMA RAINHA 159
nes c'est d' exercer la miséricorde.» De re-
pente, a-pesar de todos os biombos e de todos
os fogões eléctricos que a rodeavam, percebi
que um arrepio Jhe crispara a face e lhe
percorrera o corpo. A sua mão de artrítica
estendeu-se para um timbre ; a marquesa de
Unhão apareceu; e a velha Rainha, cuja mór-
bida sensibilidade adivinhava a distância as
correntes de ar, preveniu, afundando na seda
das almofadas o seu perfil de ave decrépita :
— Abriram uma janela no corredor...
Levantei-me. Estava terminada a minha
visita. Quando saí do palácio da Ajuda, não
sei que pressentimento me assaltou. Pouco
tempo depois, essa figura augusta de rainha,
cheia de melancolia e de dignidade, erguia-
se à altura patética da verdadeira tragédia.
Assassinaram-lhe o filho. Atiraram-na para
o exílio sob o fragor de uma revolução. Afo-
garam em sangue as últimas pedras do seu
diadema rial. E nunca mais a vi.
O PINTOR DO ALENTEJO
Era casa de Alberto Sousa, afundado nas
almofadas de rico vermelho de um nobre ca-
deirão D. João V, tive ontem o prazer de
fazer, durante meia hora, uma encantadora
viagem pelo médio e baixo Alentejo. Vi, com
todo o sol e toda a côr de um dia coruscante
de verão, o que de mais vivo e de mais pi-
toresco pode oferecer-nos a arqueologia e a
natureza em Beja — um celeiro, em Viana —
uma horta, em Évora — um museu. Durante
essa meia hora, o eminente artista, mestre
na arte luminosa da aguarela, fez passar
diante dos meus olhos deslumbrados uma sé-
rie de trinta admiráveis cartões onde, late-
jante de vida, faúlhante de sol, todo o Alen-
tejo palpita e esplende na labareda das suas
searas imensas, na confusão das suas feiras
intermináveis, na mancha ruiva do seu gado,
11
162 ESPADAS E ROSAS
na pedra doirada dos seus castelos dionisia-
nos, na côr opulenta dos seus tijolos ver-
melhos e dos seus azulejos mosárabes, nos
seus lares, nas suas vielas, nas suas adegas,
— em toda a riqueza maravilhosa da luz,
do solo, da etnologia, dos monumentos, das
tradições da mais fidalga e hospitaleira de
todas as províncias de Portugal. Quando
Théophile Gautier aconselhava, numa poesia
célebre — «Peintre, fuis Vaquarelle!» — es-
tava, decerto, longe de imaginar que a pin-
tura deslavada e mole de 1840 viria a adqui-
rir um dia semelhante poder de vibração, de
intensidade, de luminosidade. Diante dos
cartões de Alberto Sousa eu não me limitei
a supor o Alentejo: vi-o, senti-o, respirei-o,
fulgurou-me na retina, ardeu-me na pele,
experimentei, perante essas obras de arte, a
mesma sugestão de intenso, de ofuscante
alentejanismo que até agora só me tinham
dado os Ceifeiros de Fialho e a bárbara poli-
cromia dos tapetes de Arraiolos, onde fulge
e canta toda a charneca em flor. A aguarela,
que já ilustrara entre nós os nomes de Ra-
malho, de Hogan, de Gameiro, de Casanova,
conta em Alberto Sousa — impressionista
surpreendente, naturalista vigoroso, persua-
sivo evocador dos monumentos e dos costu-
mes populares portugueses — um dos seus
O PINTOR DO ALENTEJO 163
cultores mais sinceros, mais ardentes e mais
pessoais.
Vou vèr se consigo dar-lhes a impressão
do que será, amanhã, a exposição do moço
artista, flagrante reportagem regional que,
pelo muito que sugere, me recordou a frase
de Taine acerca de um pintor ilustre: — «M
pense par des formes, comme nous pensons par
cies mot$.y> A série dos seus cartões pode divi-
dir-se, segundo a sua proveniência, em três
grupos : cartões de Évora, na maior parte in-
teriores da Sé, de conventos, de estalagens;
cartões de Beja, — aspectos da planície, tre-
chos de rua, interiores de igreja e de mos-
teiro; cartões de Viana (a nobre Viana dos
condes, a-par de Alvito, viçosa como um
quinteiro minhoto) — hortas, olarias, adegas,
trechos do castelo de D. Dinis. O primeiro
grupo, se excluirmos uma porta manuelina
da rua da Selaria, com o seu dintel de granito
lavrado, um interior de estalagem onde alas-
tra- a mancha de oiro dos esteirões e das me-
didas de sal, e um recanto da casa capitular
da Sé de Évora, rodeada de arcazes e de arma-
retes seiscentistas, é quási todo consagrado
à evocação carinhosa do velho convento do
Calvário, de que Alberto Sousa fixa os mais
interessantes aspectos (e com que ternura,
com que incomparável sentimento do passa-
164 ESPADAS E ROSAS
do!) — o claustro alpendrado do século xvn,
com a sua gárgula grosseira e a sua garrida
de bronze; o refeitório; a torre sineira, tão
caracteristicamente alentejana, com os sinos
escondidos dentro de ventanas de tijolo arren-
dado; o locutório profundo; o côro-de-cima,
onde ainda se vê o cadeirado, a grade capu-
cha, o facistol com o seu antifonário aberto,
o pequeno órgão de cujo teclado parece que
se ergueram há momentos as mãos da última
freira. E', sobre tudo, na pintura da arqueo-
logia de arte que este mestre português é
inimitável. Precisamente porque possúe uma
visão educada, porque sabe vêr e observar,
Alberto Sousa tem a preocupação erudita do
detalhe; mas consegue dá-lo sem sacrifício
dos seus processos, pintando por grandes
valores, manchando com uma largueza ma-
gnífica que lembra às vezes, pela segurança
e pelo vigor, a mancha da pintura de ólio.
Nos cartões do segundo grupo — os de Beja
— onde se encontram as obras-primas da sé-
rie, ainda é mais sensível essa associação,
na aparência contraditória, da largueza da
factura e do culto do pormenor. A torre de
Santa Maria; o trecho da rua do Cepo, com
as suas chaminés mouriscas adufadas de ti-
jolo, as suas assoteias, o seu arco, os seus
esgrafitos; e, acima de tudo, os três cartões
O PINTOR DO ALENTEJO 165
do mosteiro da Conceição onde amou e so-
freu Soror Mariana — a igreja, faúlhante de
talha doirada do século xvn, o claustro, a
casa-do-capítulo com os seus painéis e o seu
poial corrido de azulejo mudejar, cheia de ar-
cazes, de credencias, de tamboretes sobre as
tijoleiras irregulares do chão — constituem,
pela solidez do desenho, pelo vigor do colori-
do, pela audácia dos efeitos, pela justeza dos
valores, pela exactidão do detalhe arqueoló-
gico, prodígios de virtuosismo difíceis de ex-
ceder na arte da aguarela. Não se suponha,
entretanto, que Alberto Sousa é apenas um
pintor de arquitectura. O eminente artista
sente a figura e a natureza com a mesma
absorvente paixão. Os três cartões deste gru-
po, em que interpreta a paisagem dos arre-
dores de Beja, planícies imensas, fulvas de
restolho, falseando ao sol e morrendo ao
longe na vaga ondulação roxa das serras dis-
tantes, são tão fortemente características do
Alentejo das ceifas, que parece exalar-se
delas, como um hálito de fornalha, o bafo
ardente da terra. Mas, para Alberto Sousa,
como para o inglês Watts, ale paysage seul
ne prouoe rien»; é precisa a figura humana,
o animal, o pormenor etnográfico a comuni-
car-lhe vida, intenção, movimento, — e assim,
nas suas interpretações da écloga alentejana
166 ESPADAS B ROSAS
há sempre, ou uma mancha negra e confusa
de gado, bezoando, cabritando, tilintando os
chocalhos de cobre das Alcáçovas sob a
guarda dos alfeireiros e dos rabadões, como
no admirável trecho da Feira de S. Louren-
ço; ou o burro de um aguadeiro, como no
Poço de Aljustrel; ou uma teoria de carros
do Alentejo, de bestas de tiro, de jaezes, de
albardões, de enxalmos, de atafais, como na
geórgica doirada da Debulha. Não são menos
ricos de côr e de poder sugestivo os cartões
do terceiro grupo, — Viana. Exceptuados uns
interiores de adega e de olaria, e um recanto
da «horta do Patalocas», a parte verdadeira-
mente interessante deste grupo é constituída
por diferentes aspectos do castelo dionisiano
que coroa a serra, e a cujo sopé dorme a
vila, como uma pincelada verde, húmida e
viçosa no meio dos sequeiros calcinados e
adustos da região. Adivinha-se, na maneira
de manchar, o êxtase voluptuoso com que
Alberto Sousa evocou esse belo exemplar
da arquitectura militar portuguesa do século
xiv, com as suas cinco torres redondas, do
tipo do donjon normando, eriçadas de coru-
chéus de tijolo, a baba de bronze que escorre
dos seus adarves seis vezes seculares, o mu-
gre que morde, que doira, que esverdeio,
que palpa, em coágulos de azêbre, cada es-
O PINTOR DO ALENTEJO 167
barro dos seus gigantes, cada fresta dos
seus ajimezes, cada arquivolta dos seus ar-
cos. Depois da geórgica, a epopeia. E dizer-
se que o moço aguarelista pintou apenas em
trinta dias esta vasta série regional onde
palpita, lateja, resplandece o Alentejo intei-
ro! E' que para êle, como para o velho Pu-
vis de Chavannes, «o único repouso é o tra-
balho; o resto é apenas fadiga».
FREI COLHERÃO
Os portugueses gostaram sempre muito
de histórias de frades. Aí vai uma, para con-
tar à lareira quando chegarem as noites de
inverno.
No fim do século xvn, assistia como vi-
gário no convento de Odivelas o padre Frei ■
Manuel de Macedo, um dos cistercienses
calinos a que se referem as colecções inédi-
tas de «bernardices» que chegaram até nós,
frade tamanhouço, vermelho, brutal, pouco
dado á virtude e muito aceito no Paço, que
passeava nas berlindas da Casa Rial o seu
hábito branco de Alcobaça, e a quem as frei-
ras tinham posto, não sei porquê, a desgra-
ciosa alcunha de Frei Colherão. Ele bem
sabia como as madres o tratavam na ausên-
cia; mas nenhuma se atrevera ainda, tão
grande potentado era na religião e no século
Frei Manuel de Macedo, a pronunciar seme-
170 ESPADAS E ROSAS
lhante palavra diante dele, nem as leigas da
cozinha quando badalavam dentro dos cal-
deiros da sopa os grandes colherões de co-
bre do mosteiro. Um dia, o padre vigário,
amigo de se meter com as freiras, como to-
dos os outros bernardos com praça de par-
vos no tempo — Frei Pedro de Alencastre,
Frei Pedro de Sousa, Frei João de Castelo
Branco, Frei António de S. José — encontrou
na copa a linda madre Dona Inácia de No-
ronha, que tinha mãos de prata para doce e
que estava enchendo de marmelada fresca
cincoenta boiões de faiança que tinham vindo
de Celas, chegou-se pé ante pé, travou-lhe
da cinta, regaçou-lhe o manto, beijou-lhe a
polpa do braço remangado onde tremia uma
lanugem doirada de pêcego temporão, — e,
se soror Inácia não grita e não acodem as
donatas dispenseiras, não se sabe o que leria
sido feito da copa, nem da marmelada, nem
da freira, nem dos boiões, nem da honra do
convento. E' claro, tratando-se de tão eleva-
da personagem, a abadessa interveio, aba-
fou-se o escândalo, mas D. Inácia de Noro-
nha, que, segundo dizia, tinha costela rial e
má venta para deixar que se baralhassem
com elo, resolveu aproveitar o primeiro en-
sejo para se vingar, publicamente, da bru-
talidade de Frei Colherão. Estávamos nas
FREI COLHERÃO 171
calmas ardentes de junho, nas vésperas do
dia do Baptista, e um frade franciscano, Frei
Tomé da Anunciação de Maria, pregador,
leitor apostólico, homem moço, esperto, gu-
loso como um cão de regalo e inimigo de-
clarado de todos os padres de S. Bernardo,
tinha chegado de liteira ao convento de Odi-
velas para pregar o sermão de S. João. Como
a fama da marmelada de Soror Inácia cor-
ria mundo, Frei Tomé, que já 1'ôra mandado
repreender por Frei Samaniego, geral da
Ordem, por pedir doce a freiras e donatas,
não se pôde conter que não batesse à porta
da cela da madre, a mendigar «um boiãosi-
nho de marmelada, daqueles que Sua Carida-
de confeitava no Céu». Ela acolheu-o com o
seu melhor sorriso, levou-o à copa a vêr
os cincoenta potezinhos de faiança azul de
Coimbra atestados de compota de marmelo,
e quando já o frade aguava e o gorgomilo
lhe subia e descia abroxado na pescoceira
do hábito de saragoça, D. Inácia pergun-
tou-lhe:
— Sempre é Vossa Paternidade que prega
amanhã o sermão do Baptista?
— Sou eu, reverenda madre.
— Conhece Vossa Paternidade o vigário
Frei Colherão >?
^-De ginjeira.
172 ESPADAS E ROSAS
— E' amigo dele?
— Como o enforcado da corda. E' bernar-
do, e basta.
— Pois eu dou a Vossa Paternidade tan-
tos boiões desta marmelada, quantas vezes
disser a palavra Colherão no seu sermão de
amanhã!
Ficou fechado o negócio com a ladina da
freira. Nessa noite, Frei Tomé da Anuncia-
ção de Maria, que acamara numa casa de
pousada fora do mosteiro, andou para trás e
para diante com os borrões do sermão, pas-
seou, escreveu sobre a estante de arquibanco
até de madrugada, e quando adormeceu por
fim, extenuado, entre os cheirosos lençóis
de linho do convento, foi para sonhar com a
bem-aventurança num paraízo resplandecen-
te feito de tanta marmelada, quanta podiam
dar, em cada verão, ressumantes de seiva, de
perfume e de sol, todos os marmeleiros flo-
ridos dos pomares de Portugal. No dia se-
guinte, estava a igreja cheia de povo, as
freiras na grade doirada do côro-de-cima, e
o vigário Frei Colherão, rechunchudo, ver-
melho, solene, assentado num banco de es-
paldar em frente do púlpito, junto á porta
da Metade, — quando o pregador assomou,
com a estola branca sobre o chiote de S.
Francisco. O coração de Soror Inácia batia
FREI COLHERÃO 173
mais apressado que a batuta de um mestre
de capela numa fuga de Glória. Que se iria
passar? Teria Frei Tomé da Anunciação de
Maria a coragem de falar em Colherão diante
do poderoso padre Macedo, que andava nos
coches de El-Rei e que era capaz de des-
lombar o franciscano se remangasse de um
estadulho para êle ? Seria Frei Colherão
homem para ouvir e calar? Entretanto, o
sermão principiou. No meio de um silêncio
profundo, Frei Tomé, discípulo dilecto de
Gôngora e S. Juan de la Cruz, começou, em
voz seráfica, por descrever o jardim do Céu,
invocando em seguida os coros angélicos para
virem colher flores e coroar o glorioso már-
tir S. João Baptista. — «Colherão os anjos ro-
sas?» — perguntava êle. E logo, estendendo o
braço na direcção de Frei Manuel de Macedo,
cujo sumptuoso hábito se destacava entre o
povo como uma pincelada branca: — «Colhe-
rão! Colherão!» Um murmúrio correu, de
alto 'a baixo, a multidão dos fiéis. Todas as
cabeças se voltaram para o padre vigário do
mosteiro. Das grades do coro rebentaram
frouxos de riso. Mas o pregador, impertur-
bável, prosseguiu: — «Colherão os anjos açu-
cenas?» E, estendendo o braço: — «Colherão!
Colherão!» — «E lírios, e cravos, e jasmins?
Colherão, colherão, colherão!» Frei Manuel
174 ESPADAS E ROSAS
de Macedo, apoplético, o cachaço rubro como
uma posta de sangue sob a cogula derrubada,
levantou-se do escano, e emquanto Frei To-
mé, serenamente, continuava — « Colherão \
Colherão!» — atirou os punhos crispados para
o pregador e gritou-lhe cá de baixo, com
toda a força da sua indignação, com todo o
vigor dos seus pulmões:
— Colherão um raio que o parta a Vossa
Paternidade !
Madre Inácia de Noronha estava bem vin-
gada. No dia seguinte, Frei Tomé da Anun-
ciação de Maria, radiante, levava comsigo, na
liteira e nos albardões dos machos, toda a
marmelada do convento.
AS QUINTAS-FEIRAS DE EL-REI
Havia em Évora, no convento da Cartuxa,
um velho códice de pergaminho, fólio gran-
de, com fortes pastas pregadas de ferro e
o aparo das folhas doirado, a que os frades
chamavam «Livro do Conselho de El-Rei
D. Duarte» e que tinha sido doado à casa de
Scala Coeli pelo seu instituidor, o arcebispo
D. Teotónio de Bragança. Esse códice, em
parte escrito, ao que parece, pelo próprio
punho do rei, continha indicações tão curio-
sas e tão completas acerca de D. Duarte,
que algumas das suas peças tornavam possí-
vel reconstituir e acompanhar, quási hora a
hora, a vida pública e privada do monarca
durante o período da sua efémera rialeza.
Infelizmente, porém, depois de muito em-
prestado, o original deste cimélio dos velhos
cartórios monásticos portugueses, que em
1796 ainda existia na livraria do convento,
176 ESPADAS E ROSAS
perdeu-se. A quem cabem as culpas? Ao
marquês de Abrantes? Ao académico da Rial
Academia de História, Martinho Mendonça e
Pina? Ao prelado dos brunos de Évora, que
facilitou de mais o códice? Não sei. O que
vale é que subsiste dele uma cópia mandada
fazer no século xvn pelo conde da Ericeira,
e que essa cópia, completa e na posse do
Estado, nos permite conhecer hoje os curio-
sos apontamentos em que D. Duarte, como
«1'homme aux petits papiers» de Charcot, nos
deixou descritas a sua vida de rei, as suas
preocupações de erudito e os seus regimes
de doente.
Escolhamos Um dia da semana — a quinta-
feira, por exemplo — e tentemos essa recons-
tituição, que pela primeira vez é feita e que
tão interessante se me afigura para a histó-
ria da magistratura rial no nosso país. Como
vivia, no século xv, um rei português? Em
que passava o seu dia o rei D. Duarte?
O Rei-Saudade levantava-se «bem cedo
pela manhã». Ainda em jejum, tomava a sua
bebida predilecta: «uma onça de açúcar des-
temperado com água fria». Era a receita do
senescal de França, transmitida a D. Duarte,
com outras regras da bárbara higiene do
tempo, por Mossêm João Morsala. Apenas
erguido do leito, «com o capelo bem abafado
A8 QUINTAS-FEIRAS DE BL-REI 177
e botas bem grossas e bem atacadas» (o rei
tinha grande sensibilidade ao frio), recebia,
nos dias em que não havia missa cantada na
capela do Paço — e a quinta-feira era um
deles — o seu confessor Frei Gil Lobo, da
ordem de S. Francisco; o seu pregador, Frei
João de S. Tomé, agostinho eloquente, «fa-
mosíssimo doutor», como lhe chamara o
papa Martinho V; o bispo-esmolér, D. Ál-
varo de Abreu, e os capelães. Era a hora
das questões de consciência, das disputas
teológicas, das dúvidas morais, da recolhida
meditação dos filósofos e dos doutores da
Igreja. D. Duarte, que tinha como regra de
boa saúde «andar de pé e estar pouco senta-
do», ouvia-os passeando, embrulhado na sua
samarra negra, entre os arquibancos da li-
vraria ou do scriptorium. Uma ou duas ho-
ras depois, chegavam os físicos, os cirur-
giões, os boticários, — o ilustre mestre João
Morsala, Abraão Guedelha, astrólogo e ar-
quiatra, mestres Afonso e Rodrigo, mestre
Ananias, boticário judeu, com a estrela ver-
melha de cinco pontas sobre o ventre da
loba. Com o mesmo escrúpulo com que tra-
tava do espírito, o rei, cheio de preocupações
nosofóbicas, oprimido sempre do sentimento
ancioso da iminência de uma doença grave,
tratava agora do corpo, medicava-se e fazia
12
178 ESPADAS E ROSAS
medicar os infantes e a rainha, comentava
Avicena, discutia os mestres cirurgiões de
Bolonha, citava de cor o Euchirídion e os
Versos Doirados de Pitágoras, retocava, acon-
selhado pelos seus capelos amarelos, o «re-
gimento de D. Duarte para quem tiver o
estômago com freima», ou, como diríamos
hoje, um «regime de dispépticos», de sua
invenção. Recebia ainda, se lhe ficava tem-
po, o vedor, o mordomo-mór, os contadores,
— e ouvia missa rezada. A hora decorrida
entre o oficio divino, que acabava às 11, e o
jantar, ou «comer», que principiava ao meio
dia, ocupava-a o monarca, ás terças e quin-
tas-feiras, em dar despacho nos «feitos de
justiça», um despacho lento, laborioso, me-
ditado, difícil, em que se reconhecia já a in-
fluência do espírito jurídico da Renascença,
e se adivinhava a mental strain que cara-
cterizou, com o seu cortejo de insónia, de
depressão, de sentimento de fadiga, de esta-
dos dolorosos de consciência, a rialeza infe-
liz de D. Duarte. O jantar deste príncipe,
segundo o regime do senescal de França,
por êle adoptado, compunha-se (diz o livro
da Cartuxa de Évora, fls. 203, v.) de «vianda
assada de carneiro, ou carnes assadas de
pena, pouca potagem, pouco pão, pouco sal,
pouca salsa». Era o mesmo espírito de so-
AS QUINTAS-FEIRAS DE EL-REI 179
briedade da idade-média, que já ditara as
leis de Afonso III de Portugal (1258) — «em
a cozinha de El-Rei não adubem senão de
duas carnes» — e as de Filipe o Ousado de
França (1279) — «quod nullus possié dare in
suo conoivio cum potagio praeter duo fercula
curn quodam inter ferculo». D. Duarte «bebia
pouco», apenas água, ou vinho destemperado
com água, a despeito das instâncias dos
médicos, que lhe aconselhavam vinho puro
e uma vita sescualis mais intensa. No fim
das refeições, conforme a indicação de Mos-
sêm Morsala, comia sempre «uma fatia de
pão torrado, sem beber». Vinham, em segui-
da, as horas de repouso da sesta. A-pesar do
seu conselho aos doentes — «guardem-se de
dormir de dia!» — D. Duarte, sobre tudo no
verão, passava uma hora pelo sono. Depois,
brincava com os infantes, ouvia a rainha
tocar manicórdio, espotrejava cavalos «em
osso e albardão», recebia os jubeteiros, os
alfaiates, os ourives. Das 3 horas às 8, con-
sagrava-se inteiramente ao despacho dos
«feitos da fazenda», com os vedores Pêro Gon-
çalves e Fernão Vasques, com o tezoureiro
Fernão Gil, com os escrivães Pêro Afonso,
Paio Roís e Alvareanes. A's 8, ceava: «vian-
da assada, pouca, e uma torrada de pão».
Sobre a ceia, ouvia os agravos dos bestei-
180 ESPADAS E ROSAS
ros» e fechava-se com o escrivão da purida-
de, Nuno Martins da Silveira. A's 10, tomava
a onça de açúcar destemperado com água
fria, recolhia-se à câmara da rainha, e dei-
tava-se, «cobrindo bem a cabeça com uma
toalha». Metódico, pontual, rigoroso, forma-
lista, um pouco frio, com todas as virtudes
e todos os defeitos da mãe inglesa, D. Duar-
te não se afastava um minuto do horário
estabelecido, e pouco o variava no resto da
semana. Nos dias de missa cantada, não re-
cebia de manhã o bispo-esmoler, nem o con-
fessor, nem o pregador, nem os capelães;
aos sábados, entre a missa e o jantar, e nos
dias de jejum às horas das refeições, dava
audiência pública.
E aqui está como passava o seu tempo
um monarca português do século xv. «Le
plus difficile en histoire — disse-o Melchior
de Vogue — c'est de faire viure les hommes» .
HISTORIA DE UMA ORELHA
Quando há dias fui, à hora do chá, a casa
de Miss Maud Baldwin, a encantadora in-
glesa que, com tanta vivacidade, desmente a
afirmação de Carlyle de que «os ingleses são
um povo de mudos», encontrei-a alegre,
afogueada, radiante, um cháile antigo de
Paisley sobre os ombros nus, contando â
irmã que tinha acabado de chegar de França
o seu afilhado de guerra.
— Inglês? — perguntei eu, beijando-lhe a
mão.
— Português! Então você não me acha
digna de ter um afilhado português?
— Oficial?
— Soldado. João Maria, batalhão do 17,
de Beja. Quer vê-lo? Tenho-o aqui.
— Na algibeira?
— Que tolice! Lá dentro, com os criados.
Miss Maud levantou-se, tocou a campai-
182 espadas e rosas
nha, compoz os cabelos ao espelho da sua
coiffeuse Império, verde- amêndoa e oiro, e
ordenou, quando a touca branca da servant-
maid assomou â porta :
— O meu afilhado que venha cá.
Daí a pouco, um rapagão alto, desemba-
raçado, trigueiro, a pele curtida do vento e
do sol, musculoso como os sobreiros dos
montados alentejanos, entrou sem constran-
gimento na sala, pisando os tapetes com as
suas largas botas inglesas de tony, baças e
quadradas, onde parecia adivinhar-se ainda
a lama das terras húmidas da Flandres.
Olhámo-lo todos com simpatia, com afecto
e com respeito. Todos nós compreendemos,
diante desse belo rapaz em cuja farda negra
de terra e de pólvora floria o traço de lã azul
de um ano de trincheiras, que era ao seu
sacrifício glorioso, e ao de sessenta mil «ser-
ranos» como êle, que Portugal devia hoje a
honra excepcional de ocupar o logar dos ven-
cedores na grande assembleia que vai ditar
a paz ao mundo. Ele encarava-nos, sorrindo,
rolando o boné nas mãos, deixando-se admi-
rar no orgulho ingénuo de um porqueiro da
charneca que marchava com o aprumo de um
f/entleman e que se gabava de ter beijado
lindas raparigas em França. Só quando se
voltou, num movimento de cabeça mais rá-
HISTORIA DE UMA ORELHA 183
pido, para responder a Miss Maud, eu notei
que lhe faltava uma orelha — a esquerda —
reduzida, sob a pastada lanzuda e fulva dos
cabelos, a um coto arroxeado de cicatriz.
— Estiveste no combate de 9 de abril?
— Estive, sim senhor.
— Foste ferido ?
— Não senhor, não fui.
— Então, que fizeste da tua orelha?
— Foi um boche que ma comeu, faz ago-
ra oito meses.
— Um boche?
As senhoras aproximaram-se, curiosas.
Miss Maud, que servia o chá, fez assentar o
seu afilhado de guerra numa poltrona, ao pé
de nós. O soldado ia tomar chá também, —
mais comodamente, decerto, do que o tomava
ao som do canhão, em Armentières, nas
trincheiras inglesas. Todos quizeram saber
a história da orelha. João Maria, em cujos
olhos se adivinhava a melancolia cinzenta do
voo das cegonhas na crosta de oiro dos gran-
des poentes do Alentejo, não teve remédio
senão contar em que circunstâncias lhe ti-
nham arrancado esse pedaço de carne que —
segundo as suas próprias expressões — «fa-
zia tanta falta na cara de um homem».
Diante das trincheiras que ocupava na
Flandres o batalhão do 17, de Beja, ficara en-
184 ESPADAS E ROSAS
cravado na «terra de ninguém», para além
da rede de arame farpado, um tracto verde e
viçoso de horta. Todas as manhãs, quando o
sol doirava a terra molhada de orvalho, íam-
se os olhos dos soldados, fartos de bolacha e
de corned-beef, na verdura fresca daquelas
couves, daquelas alfaces, daquelas nabiças
ressumantes e inacessíveis que desabrocha-
vam, e cresciam, e tufavam ao abandono de-
baixo do varejo das balas, como se a mão de
Deus as estivesse criando para um festim si-
lencioso de lagartas e de caracóis. João Maria
olhava, como os outros, a veiza fresca que vi-
cejava no no jnan's land; aguava- se- lhe a bo-
ca; cresciam-lhe ganas de deitar uma saca às
costas, de galgar o talude, e de ir, na cara
dos alemães, trigueiro e impassível como um
deus de bronze, buscar uma alforjada de
hortaliça para o rancho do seu batalhão. Mas
as ordens eram expressas; quando uma ca-
beça se levantava nas trincheiras portugue-
sas, as metralhadoras boches crepitavam; e
os heróicos alentejanos do 17, condenados à
imobilidade, como toupeiras, no seu buraco
de terra, — resignavam-se a vêr pelos peris-
cópios as couves tronchudas e magnificas
daquele rincão flamengo, que não eram de
ninguém, e que entretanto (coisa curiosa!)
ninguém se atrevia a colher. Um dia, porôm,
HISTORIA DE UMA ORELHA 185
a fuzilaria alemã foi mais viva do que de
costume; choveram as granadas de mão; a
rede de arame farpado voou estoirada, em
farrapos, e foi preciso escalar homens para
nessa mesma noite, pela sombra, de rastos,
irem concertá-la. Pediram cinco ; oferece-
ram-se vinte. Um deles foi João Maria. Por
desdém do perigo? Por ostentação de valente?
Por fanfarronada.de alentejano? Era a glória,
que lhe resplandecia diante dos olhos? Deus
do céo ! — não ; era alguma coisa de menos
elevado, de menos sublime, mas de mais ter-
reno e de mais saboroso: eram as couves.
Quando a noite caiu, João Maria e os seus
quatro companheiros, embrulhados por causa
do frio em pelicos e safões de pastor, como
os zagais de barro de Machado de Castro,
saíram rastejando, espapando-se com a terra,
compozeram como Deus quiz a rede de fer-
ro, e, acabado o serviço, se haviam de vol-
tar para a trincheira, avançaram, às apalpa-
delas, a caminho da horta. Ia tudo às mil
maravilhas, e já uma abada de couves fres-
cas ramalhava no saco, quando duas som-
bras se lhe levantaram pela frente, e depois
outras duas, enormes, recortando o casco
ponteagudo na noite azulada. Eram boches,
que vinham também á hortaliça. Não po-
diam, nem uns nem outros, disparar um
186 ESPADAS E ROSAS
tiro, soltar um grito de alarme. Estavam
metidos entre dois fogos; ao menor rumor,
a metralha chovia sobre eles, de ambos os
lados. Tiveram que liquidar o caso lutando
corpo a corpo, em silêncio, na escuridão.
João Maria atirou-se ao alemão mais espa-
daúdo; abraçaram- se ambos, resfolegando;
abateram os dois na terra; rolaram, qual
de baixo, qual de cima, ao soco, ao pontapé,
à dentada. O alentejano ia dominar o outro,
fincar-lhe um joelho na arca do peito, —
quando, de repente, o boche, hirsuto, pin-
gando baba e lama, lhe deitou os dentes a
uma orelha, e o aferrou, e a sacudiu, e a cor-
tou cerce, como um cão. O bravo rapaz sen-
tiu o sangue quente aos borbotões na cara;
retesou-se; deu um salto à rectaguarda; con-
seguiu, num relance, abrir a navalha, — e
cravando-a até aos cabos no ventre do ale-
mão, como quem mata um porco, revolveu,
retalhou, rasgou. Quando voltou para a trin-
cheira vinha com uma orelha de menos, —
mas trazia no saco o rancho do batalhão.
— E soube-te bem? — perguntou Miss
Maud, sorrindo.
— Tão bem, minha madrinha, que daí a
três dias era capaz de dar a outra orelha por
outro saco de couves!
A MORTE DE SANTA ISABEL
De que morreu Santa Isabel?
Conhecemos, pela estátua pintada e doi-
rada jacente sobre a arca tumular de Santa
Clara, pela tábua de Colónia (que é do sécu-
lo xiv, mas não deve ser um retrato directo),
e pelas declarações do inquisidor Gaspar
Borges de Figueiredo e dos médicos na pri-
meira exumação (1677), os caracteres somá-
ticos da Rainha: franzina, delicada, aspecto
doentio, olhos verdes, estrabismo convergen-
te, tipo de dólico-loira acusando a influên-
cia dos arqui-avós alemães. Para o estudo da
sua vida e da sua morte, o único documento
contemporâneo é a Lenda, escrita imediata-
mente depois do falecimento de Isabel de
Aragão. Vejamos o que a Lenda nos diz
acerca da última doença da Rainha, e tente-
mos interpretar, sob o ponto de vista médi-
co, as vagas indicações fornecidas, há qui-
188 ESPADAS B ROSAS
nhentos e oitenta e quatro anos, pelo seu
biógrafo anónimo.
Santa Isabel, na intenção de evitar a
guerra iminente com Castela, partiu de
Coimbra para Extremoz, onde se encontrava
o filho, Afonso IV. Chegou a esta vila no
fim de junho de 1336, e adoeceu logo. De
quê? «Ouve destemperamento per rezom de
huma levadiga que lhe sahio em no braço»,
— informa a Lenda. Quer dizer: sintomas
gerais, perturbações gastro-intestinais, fe-
bre, atribuídos pelas pessoas que a rodeavam
a uma causa local, determinada lesão que lhe
apareceu não se sabe em que região do braço.
Que lesão era essa, a que chamavam no tem-
po «levadiga»? Encontra-se a palavra num
documento proveniente do cartório da Cole-
giada de Guimarães, de data pouco posterior
à da morte da Rainha (1348), que diz : « . . . veo
a pestelencia, e a mortandade de door de le-
vadigas por todo o mundo tam grande, que
nom ficou viva a dizima dos homees, e rao-
lheres». Acerca da mesma peste grande,
refere o Livro da Noa, de Santa Cruz de
Coimbra: «... por São Miguel de Setembro
se começou esta pestilência, foi grande mor-
tandade pelo mundo assy que egualmente
morrerom as duas partes das gentes; e as
demais doenças erão de levaçõens, que tinhão
A MORTE DE SANTA ISABEL 189
nas verilhas, e sob os braços». Dôr de leva-
digas, ou doença de levações, era, portanto, a
peste; e levação, ou levadiga, o bubão cara-
cterístico desta infecção, ou, genericamente,
o que está de acordo com a própria etimolo-
gia, qualquer abcesso, fleimão, ou tumor não
pestoso. Faltam todas as indicações sobre a
natureza e qualidade do tumor que afligia
Isabel de Aragão; sabe-se apenas que an-
dava ligado, e que dele saía sangue: «o
pano com que ligavão as mesinhas que poi-
nha a Rainha, andava em pano sangue, que
sairá daquela levadiga». Vejamos a evolução
da doença. Na segunda-feira, 1 de julho, Santa
Isabel não pôde já levantar-se : «não saio da
cama ao Paço, ouvir missa segundo soia».
E' natural que a febre tivesse aumentado,
porque sobreveio delírio: «E jazendo esta
Rainha Dona Beatriz sendo acerca da cama,
a Rainha Dona Isabel disse à Rainha D. Bea-
triz: Filha Senhora, dade logo a essa Dona
que" ahi vae. E a Rainha: que Dona he? E
ela disse: essa que por ahi vae dessas ves-
tiduras brancas. E a Rainha, nem as outras,
nom vião cousa do que ela dizia.» Não se
sabe como Isabel de Aragão passou os dias
2 e 3, terça e quarta. Na quinta-feira, 4, es-
tava relativamente bem, não inspirando cui-
dados aos próprios médicos: «nom cuidarom
190 ESPADAS E ROSAS
os fizicos que por aquela dor sua morte acer-
ca fosse». Levantou-se «de gram manhãa» ;
confessou-se; saiu da câmara «sem ajuda
de outrem, mui esforçada» ; «veio em gio-
lhos até ao altar», e comungou. A' noite,
quiz levantar-se outra vez; teve uma verti-
gem que a obrigou a amparar-se ao leito; e,
em seguida, uma síncope: «E estando El-
Rey ante a porta da camará, a Rainha caiose
da cama e onconstou-se a ela, e começou de
esmorecer. Aqueles que em a camará estavão
derom vozes a El-Rey. Tornou á camará, e
El-Rey tomandoa per as mãos, e beijandoas,
acordou a Rainha daquel esmorecer, e veo
a falar com El-Rey em como esmorecera.»
Disse ainda algumas palavras, — «Maria,
mater gratiae, mater misericordiae» : depois,
«foi enfraquecendo no dizer e falar, que a
não podião entender», e, nessa mesma noi-
te, 4 de julho, morreu. Eis tudo quanto, de
fonte coetânea, se sabe acerca da última
doença e da morte de Isabel de Aragão. Será
possível, com estes elementos, formular um
diagnóstico retrospectivo?
A idea da peste, e, por conseguinte, de
uma adenopatia pestosa supurada da axila,
idea naturalmente sugerida pela designação
de «levadiga» dada ao tumor do braço da Rai-
nha, parece-me que deve ser posta de lado.
A MORTE DE SANTA ISABEL 191
A peste só doze anos mais tarde (1348) vol-
tou a grassar com intensidade em Portugal.
Alem disso, o pouco que se sabe da evolu-
ção da doença de Santa Isabel contraria essa
hipótese. O estado da Rainha, no próprio
dia da sua morte, era aparentemente tão sa-
tisfatório, que os tísicos estavam longe de
suspeitar um desenlace fatal. De resto, esses
físicos — mestre Pedro, depois bispo da Guar-
da, mestre Tomé, reitor de S. Julião, homens
superiores do seu tempo, e, sobre tudo, o
médico árabe de D. Afonso IV, que com êle
estava em Extremoz —deviam conhecer bem
a peste, e não lhes passariam desapercebi-
dos os sintomas da grande pandemia medie-
va, se a ela tivesse sucumbido Santa Isabel.
Também não julgo provável a hipótese de
uma pústula maligna, a que se inclina, na
sua admirável obra sobre Isabel de Aragão,
o eminente professor dr. António de Vas-
concelos. Em primeiro logar, no caso da
Rainha trata-se de uma lesão no braço; e os
locais predilectos da inoculação carbunculosa
são as partes descobertas, a face, o pescoço,
as mãos. Isabel de Aragão, embrulhada no seu
hábito de donata de Santa Clara, e viajando
dentro de umas andas fechadas, poderia ainda
ser inoculada nas mãos, ou na face ; mas não
era de crer que o tivesse sido na polpa dos
192 ESPADAS E ROSAS
braços, rigorosa e monacal mente cobertos
De resto, nem a pústula maligna correspon-
de ao que, no século xiv, se chamava «leva-
diga», que é propriamente o abcesso, o bu-
bão, nem se explicaria, perante o aparatoso
síndroma do carbúnculo, a tranquilidade e o
optimismo dos médicos. O caso da Rainha
deve, quanto a mim, limitar-se a um aciden-
te local de natureza inflamatória, um furún-
culo, um abcesso, um fleimão que determi-
nou sintomas gerais graves num organismo
enfraquecido pela idade e pela doença. Santa
Isabel contava, ao tempo da sua morte, 62
anos; e, onze anos antes, já ela declarava
que, a-pesar de ter vestido o hábito, a falta
de saúde não lhe permitia a observância da
regra e da ordem «por que somos em tal
idade, e em tal estado, e avemos taes enfer-
midades, que nom poderiamos soster nem
comprir aquelo» (Declaração de Santa Isabel,
in Monarch. Lusit., VI, 383). Não me parece
improvável, perante as suas tendências sin-
copais, que a Rainha fosse uma cardíaca,
mais ou menos compensada; nem seria tam-
bém para estranhar, em Isabel de Aragão, a
existência da diabete, dada a acumulação da
hereditariedade em todas as famílias dinásti-
cas, o fundo nevropático das estirpes de
Aragão, de Gourtenay, de Hoenstauffen e de
A MORTE DE SANTA ISABEL 193
Sabóia, e as estreitas relações, já, de resto,
muito estudadas, entre a diabete e as nevro-
patias (Langiewiez, Griesinger, Lockart-
Clark, Pavy, Féré, etc). A's condições de mí-
nima resistência do seu organismo, empo-
brecido por causas hereditárias, por doenças
adquiridas, e pelas práticas abstinentes de
uma vida quási monástica, vieram ainda jun-
tar-se, naquele momento, o abalo moral pro-
duzido pela iminência da guerra, e a fadiga
excessiva de uma jornada de Coimbra a Ex-
tremoz, pela charneca, debaixo dos calores
ardentes de junho, nas terríveis andas por-
tuguesas ou nas selas galegas ouropeladas
de Afonso III. Um sopro bastava para apagar
a pequena chama daquela vida. Santa Isabel
deve ter sucumbido, segundo todas as pro-
babilidades, ou a uma síncope cardíaca pro-
duzida no decurso dos sintomas gerais de
um fleimão axilar, ou a acidentes infeccio-
sos ou adinâmicos consecutivos a um des-
ses fleimões gangrenosos, tão vulgares nos
diabéticos.
13
AS NOIVAS DE MATUSALEM
Há meses, em S. Carlos, no intervalo de
um concerto em que apenas se tocou Bee-
thoven, fui visitar no seu camarote M. ine X,
que veste como uma boneca, raciocina como
uma criança e fuma como um homem. Es-
tava com ela uma das suas melhores amigas
que, por ser a mais recente, eu não conhecia
ainda. M. me X. teve a gentileza de nos apre-
sentar, — com a expressão vagamente desde-
nhosa que já observei em muitas mulheres
quando apresentam uma amiga mais interes-
sante do que elas. Era uma loira esplêndida,
com os perigosos trinta anos de Balzac e uns
ombros olímpicos capazes de conduzir os
quatorze filhos de Niobe. Admirei-a com a
profunda convicção com que todos os portu-
gueses admiram a mulher dos outros, e con-
fesso que lhe beijei as mãos muito menos
por cortezia do que pelo desejo de sentir, de
196 ESPADAS E ROSAS
aspirar a pele morna daqueles graciosos de-
dos, que me davam a impressão de um pe-
queno molusco côr de rosa sobre cujo dorso
tivesse caído uma pérola. Percebi que M. me
X. lhe chamara Viscondessa de qualquer
coisa, e achei que lhe ficava bem o título.
Conversámos. Falou-se da nona sinfonia;
discutiu-se música alemã; disse-se mal de
toda a gente que estava nos camarotes; e, a
propósito da mulher do decrépito general
Lencastre, que devia ter trinta e dois anos e
recortava na penumbra de uma friza o seu
perfil triste de marfim doirado, não pude
deixar de observar, com a maior naturalidade
do mundo:
— Já reparou, Viscondessa, na rapidez
com que envelhecem as mulheres novas que
se casam com velhos?
A encantadora criatura sorriu, e eu, ani-
mado por aquele sorriso, fiz toda a espécie
de considerações acerca da singular particu-
laridade, que possuem os maridos velhos e
decrépitos, de envelhecer rapidamente as
mulheres novas com quem se casam, como
se a senilidade fosse uma doença contagiosa
susceptível de transmitir-se pela intimidade
conjugal. Não era uma blague de ocasião; era
um facto já muitas vezes observado por mim,
e que se repetia com a fatalidade de uma lei
AS NOIVAS DE MATUSALEM 197
biológica. Algumas raparigas que eu conhe-
cera em solteiras, de uma frescura, de uma
alegria, de uma graça de flores, fui encontrá-
las mais tarde, poucos anos, às vezes poucos
meses depois do seu casamento com sexage-
nários e septuagenários, completamente mu-
dadas, umas velhinhas precoces, estioladas,
ressequidas, tristes, curvadas como pequenas
múmias, e — coisa curiosa! — com uma acen-
tuada tendência para adquirir as mesmas
atitudes, a mesma expressão, a mesma fisio-
nomia dos maridos. Estava provado já, desde
os reis bíblicos até à decrepitude de Goethe
e aos conselhos de Boerhave ao burgrave de
Amsterdam, que o contacto com a gente
nova, remoça; não admira, portanto, que o
contacto com a gente velha, envelheça. Um
organismo moço que se condena a hábitos
senis, cujo ritmo de vida tem de ajustar-se
ao ritmo lento da existência de um velho, sofre
necessariamente o influxo de desarmonias
profundas que hão de traduzir-se no abaixa-
mento do seu tónus vital. Todas as suas
energias adormecem ; todos os seus tecidos
se estiolam, como polpas de flor ao sol ; a
braditrofia instala-se com o seu cortejo de
intoxicações, e essas semi-esposas, essas
pobres noivas de Matusalèm, velhices preco-
ces e, até certo ponto, velhices artificiais.
198 ESPADAS E ROSAS
simulam aos trinta anos a expressão valetu-
dinária dos setenta, e — suprema irrisão! —
acabam por se parecer fisicamente com os
maridos, mercê de um singular mimetismo
conjugal que é, para a mulher, o maior cas-
tigo dessas uniões de interesse e de conve-
niência. Quando eu estava dizendo isto, M. me
X. tocou-me significativamente com o pó, a
porta do camarote abriu-se, entrou um ve-
lho, alto, calvo, distinto, de óculos de oiro
e grande barba branca, e a Viscondessa, vi-
sivelmente contrafeita, apresentou-mo, bai-
xando os olhos:
— Meu marido.
Não havia dúvida de que eu tinha feito uma
gaffe. Ainda quiz, em voz baixa, confessar a
essa linda mulher que ela era uma excepção,
que perante ela a minha teoria dos maridos
velhos abrira falência, que a sua mocidade
de flor era capaz de resistir ao hálito funes-
to de todos os patriarcas da Bíblia, — mas o
concerto recomeçou, o Visconde tossiu, M. me
X. levou o lenço à boca para não se rir de
nós três, e eu não tive remédio senão descer
á plateia, instalar-me no meu fauteuil, e ouvir
outra sinfonia de Beethoven, entre uma fran-
cesa, escandalosamente magra, decotada até
aos joelhos, e uni oficial de marinha, invero-
símil mente gordo, que cabeceava com sono.
AS NOIVAS DE MATUSALBM 199
Passou-se tempo. Nunca mais me lembrei
da admirável criatura que encontrara no
camarote de M. me X. Ontem, à hora do chá,
numa tarde de ligeira névoa que me fez pen-
sar em Paris, uma limousine, scintilante de
metais, parou à porta da Marques, e uma
mulher loira, toda vestida de veludo preto,
um béret e uma gola enorme de lontra a
envolver-lhe o pescoço, apeou-se, viu-me, e
caminhou para mim num ar decidido e ri-
sonho:
— Obrigada, meu amigo! Quanto lhe agra-
deço!
Era a Viscondessa. Olhei-a, surpreendi-
do. Ela continuou, apertando-me a mão en-
tre as suas:
— Sabe? Divorciei-me. Você tinha razão.
Eu estava envelhecendo tanto!
UMA PAIXÃO
Os papéis do meu amigo João Monfalim,
morto há pouco tempo no Waldsanatorium
de Davos, foram remetidos à família pelo
honrado dr. Jessen. Li-os, a noite passada.
Num diário referente aos últimos sete meses
da sua vida, encontrei esta vibrante página
de amor, que impressionou a minha sensibi-
lidade e que, até certo ponto, explica a re-
cente crise de doença do meu pobre amigo:
«Nove da noite. Volto a casa depois de a
ter sentido palpitar, estremecer, como uma
pequenina ave moribunda, entre os meus
braços. E' ainda o seu perfume que me en-
volve, que caminha comigo, que me infiltra,
que me penetra, que se espalha em redor de
mim como uma atmosfera de volúpia e de
mistério. Sinto-a, respiro-a, vejo-a. A sua
voz canta-me aos ouvidos, os seus beijos
latejam-me na boca, passam-me diante dos
202 BSPADAS E ROSAS
olhos, em faúlhas, em scentelhas, em clarões,
o âmbar doirado da sua pele, a onda fulva
dos seus cabelos, as jóias diabólicas das suas
mãos. Procuro repeli-la, afastá-la do espírito,
mas a sua figura adorada volta, multiplica-
se, desdobra-se, transfigura-se, revive em
cada mulher que passa, em cada boca que
sorri, em cada sombra que estremece, — é ela
sempre, é eternamente ela que eu vejo, que
eu sinto, que eu adivinho, que eu recordo
numa obsessão, como se na existência inteira,
no mundo inteiro, não respirasse, não sorrisse,
não beijasse, não vivesse senão ela. Deixo-me
cair, extenuado, no Maple do meu gabinete
de trabalho, e espero que a serenidade volte
para reconstituir, para analisar as minhas
emoções. Começaram a embranquecer-me os
cabelos; a febre da paixão não tem já segre-
dos para mim: e, entretanto, nunca imaginei
que a sensualidade pudesse ser tão profunda,
nunca supuz que no sentimento brutal da
posse, gérmen confuso de toda a crueldade
humana, coubesse tanta delicadeza, tanta
comoção e tanta ternura. Instante de amor,
vertigem de infinito, como eu abranjo agora
a tua imensidade! Tudo me parece pálido e
inexpressivo— afectos, ambições, ódios, gran-
dezas — perante a força dominadora daquele
corpo frágil, daquelas mãos tranquilas, daque-
UMA PAIXÃO 203
les olhos enormes de criança, em cuja som-
bra quási roxa dormem todos os êxtases,
todos os esplendores, todas as melancolias,
todas as perversidades! E porquê? O que há
nela, afinal, de absorvente c de perturbador,
— que encanto ou que mistério a tornam, a
um tempo, infernal e divina? Pelos meus
nervos corre ainda muito vivo o arrepio sa-
grado das suas carícias, para que eu possa
analisá-la serenamente. Há na sua beleza
clarões, instantes fugitivos de espiritualidade
que as palavras, pobre argila espessa e pe-
sada, são impotentes para expressar e para
traduzir. Emquanto escrevo, procuro, como
Hoffmann, com o meu lápis nervoso, dese-
nhar-lhe o perfil, surpreender a linha do seu
corpo, a ondulação dos seus movimentos, os
ritmos da sua marcha, — e acumulo, inutil-
mente, traços sobre traços, sombras sobre
sombras. Fecho os olhos para a vêr melhor,
— e a sua cabeça inolvidável aparece-me,
como um Botticelli ou um Filippino Lippi, en-
volvida na onda inquieta dos cabelos, coroan-
do um pescoço alto de cisne côr de rosa;
acompanho a linha florentina das suas espá-
duas, modeladas em pequeninas fossetas de
sombra doirada e macia ; sigo os seus bra-
ços olímpicos, feitos para enlaçar, para aper-
tar, para cingir, braços onde há graças de
204 ESPADAS E ROSAS
vôo, delicadezas de arbusto, curvas flexíveis
de metal; recomponho, uma a uma, as suas
feições ; a tristeza profunda das suas gran-
des pálpebras descidas e sulcadas de veias
azuis; o seu nariz de deusa, recto, imperativo,
de uma impossibilidade grega, arfando im-
perceptívelmente as narinas rosadas como
conchas; a sua boca expressiva até ao exa-
gero, quâsi ao mesmo tempo irónica, des-
denhoso, voluptuoso, opoixonada, cruel; vejo,
numa vaga névoa de rendas, o seu busto
magnífico, o seu torso onduloso de oréada,
de dríada perdida espreguiçando-se entre as
espumas mitológicas de Capréa ; desço aos
seus pés fortes, aduncos, nervosos, ílexuo-
sos, pés grandes vinte vezes mais delicados,
mais expressivos, mais subtis, mais nobres
do que todos os pés pequenos, — euma im-
pressão de harmonia suprema, de equilíbrio
perfeito, de graça musical domino, oo evo-
cá-lo, todos os meus sentidos, imobilisa-me
num deslumbramento, como se a estátua
gloriosamente mia de Giúlia Farnésia sur-
gisse na penumbra cor de rosa dos meus
olhos fechados. Quem é ela? O que há, no
fundo do seu pensamento instável e da sua
alma ignorada? Que sentimento de curiosi-
dade intelectual, de perversidade ingénua a
trouxe desvairadamente, repentinamente paia
UMA PAIXÃO 205
mim? Donde veio esta mulher, que encheu
de súbito a minha existência, como uma fa-
talidade? Que abominável destino a condu-
ziu? Que divina loucura resplandece no seu
olhar? Uma página do livro de Jeanne Mar-
ni, Comment elles se donnent, passa no meu
espírito perturbado. O brilho das pérolas,
que lhe afogavam o pescoço, parece ofus-
car-me ainda. Tenho a impressão de que as
suas mãos, como garras, me dilaceram.
Vejo-a no fundo da carruagem, embrulhada
na sua cnpa de seda negra, estendendo-me
uns dedos pálidos onde faíscam jóias, e a
frase grandiosa de Meyerbeer aparece-me,
como uma profecia funesta: — «Femme, tu
prolonges Vart, mais tu raccourcis la me ! »
Que consciente obra de destruição e de morte
te fez surgir no meu caminho? Flor de ve-
neno e de encanto, porque me sorriste tu,
porque me mataste tu?»
Não sei, de todo em todo, quem foi a «flor
de veneno e de encanto» que inspirou esta
página. Consegui apenas averiguar que se
chamava Maria Júlia. Dois meses depois de
a ter escrito, João Monfalim morria nos bra-
ços do dr. Jessen, repetindo o verso célebre
de Millevoye: — «Femme pour qui je meurs,
oous à qui je pardonne . . . »
HUMOUR
Uma destas noites, quando eu conversava,
no grande salão do Avenida Palace, com o
meu amigo Joe Seymours, a ondulação de um
vestido branco passou ao fundo, junto das
vidraças da sala de leitura, e eu confesso
que, por um momento, a minha atenção des-
viou-se das considerações interessantes que,
acerca de pavões e do câmbio sobre Londres,
me estava fazendo esse inglês ruivo pendu-
rado num grande cachimbo de barro, — para
seguir, com a mais portuguesa das curiosi-
dades, um vulto branco de mulher que se es-
coava, como uma pequena névoa luminosa,
entre a* brise-btse de renda. Joe Seymours
sorriu. Evidentemente, não gostou de que eu
trocasse por uma futilidade as suas sólidas
palavras, e disse-me, sorvendo o seu forte
tabaco de Espanha:
— Portugueses não teem espírito prático.
Ri, naturalmente, da observação do meu
208 ESPADAS E ROSAS
amigo inglês, já feita há muito tempo por
toda a gente, e quando lhe perguntei se, por-
ventura, nunca o tinha distraído o movi-
mento de uma saia ou a luz de um cabelo
de mulher, as pálpebras enrrugaram-se-lhe
numa expressão de benevolência, os seus
pequenos olhos brilharam, e Joe explicou,
seco, nítido, exacto :
— Ingleses não se preocupam com as mu-
lheres. Ingleses preocupam-se com a sua
mulher. Ingleses teem espírito prático.
O criado serviu whisky flip. Uma luz ma-
cia, doirada, flutuava na sala, escorria pe-
los Maples, flamejava nos metais. Conversá-
mos. Foi então que Joe Seymours, falando
do caracter utilitarista do anglo-saxão, me
contou, com esse incomparável humour que
é, como o fair play, uma das características
do espírito inglês, e que Taine definiu «une
jooialitè violente enfouie sous un monceau de
tristesse», certa anecdota que teria dado uma
scintilante página a Dikens ou a Thackeray,
a Fielding ou a Wendel Holmes.
Morreu em Paris um belo dia, sem her-
deiros forçados, um milionário americano.
Era um velho gigantesco, extravagante, que
fora sócio de Géo Perkins, e que o demi-
monde de Chex Maxirris conhecia pelo «ho-
mem dos olhos amarelos». Aberto o testa-
HUMOUR 209
mento, verificou-se que deixava toda a sua
fortuna, em partes iguais, aos seus três par-
ceiros de bridge, — um espanhol, Don Juan
Carrillo, secretário da embaixada de Espa-
nha, um francês, Mr. Naudin, de uma em-
presa construtora de automóveis, e um in-
glês rígido, fleumático, curiosíssimo, Mr.
Donaldson, que tinha estado muito tempo na
Jamaica e que fazia criação de andorinhas
azuis, — com a condição expressa de que, an-
tes do saimento fúnebre, cada um dos três
legatários depositaria no seu caixão cinco
libras. Que eram cinco libras para os her-
deiros de uma fortuna tão considerável? A'
hora própria, correctamente enfiados em sô-
bre-casacas pretas, os três homens entraram
na câmara-ardente para cumprir, com es-
crupulosa pontualidade, aquela singular dis-
posição testamentária. O espanhol foi o pri-
meiro. Avançou, grandioso, subiu os degraus
da éça, cofiou reflexivamente a sua mosca à
Filipe IV, mostrou aos assistentes cinco li-
bras em oiro, e depositou-as, com solenida-
de, junto da cabeça do defunto. Seguiu-se o
francês. Mr. Naudin, um elegante que usava
espantosos coletes de veludo como o prín-
cipe de Kaunitz, olhou em volta, tirou da al-
gibeira uma caneta e um livro de cheques,
escreveu com a maior naturalidade do mundo
14
210 ESPADAS E ROSAS
— «cinco libras ao portador» — assinou, do-
brou, e meteu no caixão aquele cheque a pa-
gar na Eternidade. Chegou então a vez de
Mr. Donaldson, o terceiro legatário do «ho-
mem dos olhos amarelos». Todas as atenções
se fixaram nele. Em movimentos automáti-
cos, aquele inglês magro e formalista, que a
si próprio se considerava o mais prático de
todos os homens, aproximou-se, tirou do
caixão as libras de Don Juan Carrillo e o
cheque de Mr. Naudin, guardou-os na algi-
beira, abriu o seu livro de cheques, e hirto,
solene, maquinal, escreveu: — «Quinze libras
ao portador». Assinou, mostrou a ordem de
pagamento aos circunstantes, e meteu-a nas
mãos do defunto. AU rigth! Momentos de-
pois, o caixão soldava-se. Mr. Donaldson,
sem ter deixado de cumprir as disposições
do testamento, — ganhara dez libras.
— Inglês deve fazer dinheiro de tudo,
excepto da sua consciência, — comentou Joe
Seymours.
Entretanto, a ondularão do vestido bran-
co, que eu adivinhara através das vidraças
da sala de leitura, vinha caminhando para
nós. Era a riquíssima Miss Molly, — loira,
rosada, transparente, espiritual como o re-
trato célebre de John Opie — a quem Joe bei-
jou a mão.
HUMOUR 211
— Good nigih !
— Good nigth !
Joe Seymours olhou-a emquanto ela se
afastava na atmosfera luminosa da sala, e,
como me visse sorrir, disse-me, sorvendo o
seu cachimbo :
— Inglês não se casa senão com uma mu-
lher por quem se apaixone.
E concluiu, impassível :
— Mas nunca se apaixona senão por uma
mulher que tenha dinheiro.
A PAZ
Não resta a menor dúvida. O meu amigo
Horácio Pontes, o helenista admirável em
cuja calva socrática resplandecia a alma da
velha Grécia, o meu falecido camarada Pontes
— ressuscitou. Vi-o ontem, vestido de uma
gabardine impermeável, um coco cinzento no
alto da cabeça, descer o Chiado e abrir-me
os braços. Fiquei assombrado. Eu não podia,
sem cometer uma grave inconveniência, per-
guntar-lhe se estava vivo. Pareceu-me tam-
bém de mau gosto, tratando-se de um homem
que ressuscitou, informar-me da sua saúde.
Limitei-me a abraçá-lo com efusão, para me
certificar de que a imagem de Horácio Pontes
era rial e palpável, e exclamei, para dizer
alguma coisa :
— Então o que há da paz?
— Corre tudo ás mil maravilhas. Estamos
já a caminho da outra guerra.
214 ESPADA» E ROSAS
— Qual guerra?
Horácio olhou-me, numa expressão entre
irónica e profunda, e passeando diante da
Havanesa a sua bengala pomme cVor, com a
solenidade com que Demósthenes arrastava
o seu báculo no Pnyx, quiz ter a gentileza
de me elucidar :
— O meu amigo sabe que a história se re-
pete ritmicamente por ciclos de aconteci-
mentos. Os homens e os factos são sempre
os mesmos ; só os scenários mudam. E' daí
que provêm o valor da história como lição.
Os acontecimentos do passado esclarecem e
comentam os factos do presente. A história
é um oráculo. Consulto-a várias vezes, com
o mesmo supersticioso terror com que um
grego entrava no templo branco de Delphos.
Foi o que fiz agora, a propósito dos sucessi-
vos armistícios e da próxima paz wilsoniana.
Sabe vocò o que a história me disse? Que às
lutas da Grande Guerra iam suceder-se fa-
talmente, necessariamente, as guerras da
Grande Paz. Ora eu me explico melhor. Há
uma página da epopeia grega que não recordo
nunca sem sentir retinir, clangorar aos ou-
vidos, como uma fanfarra de cobre, os ver-
sos sonoros de Eschylo. São as guerras nir-
dicas. O imperialismo persa, o pan-raèdismo
do v século, na sua marcha de infiltração e
A PAZ 215
de conquista para o ocidente — o caminho do
sol — apossou-se das cidades gregas da Asia-
Menor, disputou a Athenas a influência no
mar Egeu e ameaçou a Europa. Quem domi-
nava então na Pérsia era a dinastia dos Aque-
ménidas, espécie de Hohenzollern medos dis-
pondo de um poder militar considerável, de
exércitos em que se contavam por milhões
as unidades humanas — psiammokosiogârgara,
como dizia, sorrindo, Aristóphanes — e por
milhares as unidades paquidérmicas, colos-
sais elefantes de batalha, que não eram outra
coisa senão os tanks animais blindados da
guerra primitiva. Esses exércitos bárbaros
massacraram populações, destruíram e in-
cendiaram cidades, encheram de indignação
e de terror o mundo grego, e teriam, de-
certo, irrompido pela Europa e modificado
profundamente os seus destinos históricos,
se duas grandes potências militares aliadas,
uma poderosa no mar — Athenas e as suas
colónias — , outra poderosa em terra — Sparta
e a confederação dórica — , não lhes tivessem
oposto, em nome da liberdade e da civiliza-
ção, a barreira de bronze das suas armas. O
Mame de então chamou-se Marathona. Uma
outra grande batalha — Salamina — restituiu
a Athenas a supremacia dos mares. As vitó-
rias de Micália e de Plateia acabaram de ferir
216 - ESPADAS B ROSAS
no coração o imperialismo persa, — e os for-
tes espartanos galeados de cobre, e os elegan-
tes atenienses coroados de violetas — ioste-
phanous — conseguiram, pela sua acção coali-
sada, salvar a Europa, destruir o militarismo
aqueménida, impor o respeito pelas pequenas
nações e assegurar o triunfo das democra-
cias. Fez-se a paz, que não foi de Wilson, —
mas que foi de Címon. E depois, que suce-
deu? Que viu o mundo grego, cheio de
assombro, quando julgava ter conquistado
definitivamente o direito de depor as armas
e de gosar tranquilamente uma paz doirada,
dionisíaca e fecunda? Viu rebentar de novo
a guerra, — e, desta vez, entre Athenas e
Sparta, entre os próprios aliados, incapazes
de entender-se na partilha das vantagens
que lhes tinham resultado da vitória comum.
Os problemas da supremacia dos mares, da
expansão colonial de Athenas, do seu des-
armamento, das suas zonas de influência
comercial, tiveram de ser resolvidos pêlo
ferro, pelo fogo e pelo sangue, usando-se
dos mesmos processos bárbaros que a alma
helénica, possuída do sentimento imortal da
justiça e da humanidade, condenara no mili-
tarismo persa. A guerra do Peloponeso, essa
guerra inter-aliados, essa guerra-da-paz, a
que Seignobos chamou «luta do elefante e da
À PAZ 21?
baleia», durou 27 anos, foi uma triste epopeia
de negociantes e de novos-ricos, e cons-
titúe a expressão de uma fatalidade histó-
rica, que tem inexoravelmente de repetir-se
sempre que um grupo de nações animadas
de espíritos diversos e de interesses contra-
ditórios, se coalisa para combater um ini-
migo poderoso, e o vence pelo esforço guer-
reiro. Estamos em vésperas de assinar a paz.
Pois, meu amigo, você verá que, uma vez
destruído o imperialismo germânico, uma
nova guerra vai rebentar entre algumas das
nações que se aliaram para destruí-lo, — e
não será, decerto, uma surpresa para nin-
guém, vêr a confederação alemã entrar na
lutn, colocando-se decisivamente ao lado de
um dos grupos beligerantes. A questão da
liberdade dos mares é a scentelha destinada a
atear a nova conflagração. Gomo consequên-
cia, uma inversão de hegemonias está pres-
tes a produzir-se no mundo. Registe o que
eu lhe digo e espere os acontecimentos. On-
tem, era a Europa que tinha colónias na
América ; amanhã será a América que terá
colónias na Europa. Eis o que me afirmou
o oráculo de Delphos, quando, entre cipres-
tes roxos e loureiros sagrados, ao sol da
Hélade branca, subi as escadas do seu templo.
Horácio Pontes calou-se. Principiava a
218 ESPADAS E ROSAS
animar-se o Chiado. Junto de nós passou
uma linda mulher, coberta de peles — como
todas as feras. Quando eu ia responder às
singulares afirmações que ouvira, o meu fa-
lecido amigo levantou os braços, saúdou-me
como o faria um grego elegante da decadên-
cia — Kaire kai erroso ! — , e desapareceu
no clarão do poente.
FREI BONIFÁCIO
Bonifácio Mendes, casado, de -48 anos.
curto de entendimento, tronchudo de carnes
como o escudeiro Sancho, vivia por volta de
1780 na Azueira, era de sua profissão almo-
creve, e fazia a recovagem entre Torres
Vedras e a corte. Um dia, assentado no al-
bardão mourisco da burra, pensou com Deus
e comsigo que, se cortasse a direito pela ta-
pada de Mafra, encurtaria caminho. Obtida
licença do guardião do convento e do inten-
dente do paço, Bonifácio Mendes, inundado
de beatitude e de sol, um barrete verde de
orelhas enfiado na cabeça, as pernas tortas
apresilhadas numas polainas de saragoça de
varas, abriu a cancela, tornou a montar na
cavalgadura, e, ao chouto dançado das es-
quilas de cobre, na sesta mais ardente de
todo aquele agosto pagão, lá meteu, risonho
e pacífico, pelas brenhas da tapada rial. Não
220 ESPADAS E ROSAS
andou muito tempo que não visse, acocora-
dos em volta de uma toalha branca, numa
viçosa e copada sombra, três frades meren-
dando.
— Salve-os Deus, meus padres!
Os arrábidos, afogueados da merenda,
com o chiote remangado a mostrar a polpa
gadelhuda dos braços, olharam o almocreve,
cuidaram um instante que o próprio Sileno,
obeso e coroado de pâmpanos, vinha assistir
à bacanal daquela tarde doirada, saltaram,
deitaram mão ao cabresto da azêmola, ro-
dearam o homem, botaram-no do albardão
abaixo, meteram-lhe nas mãos uma tarrada
espumante de vinho novo, e não largaram
mais o pobre recoveiro da Azueira, que ria
como uma páscoa, emquanto o não viram per-
dido de bêbado, a rebolar-se na relva, abra-
çado à burra, qual de baixo, qual de cima. Mas
ia caindo a noite, os frades tinham de reco-
lher para vésperas, e foi preciso decidir
o que havia de fazer- se ao almocreve', se
deixá-lo a roncar de borco na terra, com os
chocalhos ao pescoço e os ceirões de esparto
às costas, se albergá-lo por caridade no con-
vento. Venceu o alvitre mais cristão, e em-
quanto um dos arrábidos conduzia a alimá-
ria, os outros dois levaram em charola o
Bonifácio Mendes e deitaram-no em cima de
FREI BONIFÁCIO 221
uma manta num dos escanos da portaria.
Três franciscanos juntos — já o dizia Frei
Apolinário da Conceição — são a imagem do
mesmo diabo. Noite andada, depois de mati-
nas—de que haviam os frades de se lem-
brar? — foram-se ao almocreve que dormia
no melhor do seu sono, raparam-lhe a cara,
abriram-lhe o cercílio com todo o escrúpulo
da regra na tonsura franciscana, despiram-
no, descalçaram-no, ataram-lhe umas sandá-
lias, enfiaram-lhe umas bragas de estopa,
um hábito de capucho, puzeram-lhe à cinta
umas camàndulas e uma corda de nós, leva-
ram-no para a cela de um padre velho que
saíra a ares, deitaram-no nas cortiças do ca-
tre, fecharam-lhe a porta, e combinaram os
três vir acordá-lo na manhã seguinte, antes
do refeitório, para ver o que faria o triste pa-
tego da Azueira quando se visse transfor-
mado em Frei Bonifácio. Se bem foi dito,
melhor foi feito. Ao outro dia, na volta do
côro T depois da hora de prima, os três fra-
des entraram na cela do recoveiro, ferrado
ainda no sono, cantaram-lhe uma antífona
aos ouvidos em vozes atroadoras, sacudiram-
no, varejaram-no, borrifaram-no, — e acaba-
ram por acordar aquela formidável massa de
estupidez e de vinho que roncava dentro de
um chiote de S. Francisco. Bonifácio Men-
222 ESPADAS E ROSAS
des assentou-se de repelão, encarou os fra-
des, esfregou os olhos, palpou-se e sentiu
a estamenha do hábito, deitou as mãos à
cabeça e encontrou-a rapada à navalha, sal-
tou da cama e viu os pés nús abroxados em
sandálias de frade, desatou a berrar aqui-
del-rei, a chamar como um possesso pela
mulher e pela burra, a escabujar em tão for-
tes gritos, que os padres temeram que o
escândalo chegasse ao guardião e ao mestre
de noviços.
— Mas Vossa Paternidade que tem? —
perguntavam-lhe os arrábidos, rodeando-o.
— Qual Paternidade, nem qual diabo! Eu
sou o recoveiro da Azueira, vou para Loures
e quero a minha burra!
— Então Vossa Paternidade não vê que é
o reverendo vigário do mosteiro?
— E' que me trocaram emquanto eu dor-
mia ! Que eu ontem era almocreve, a minha
mulher é Ana Lourença, e quero já para
aqui a cavalgadura que me furtaram!
Dois leigos da cozinha, industriados pe-
los três frades, assomaram à porta com um
tacho de assòrda cheirosa, uma infusa de
vinho e uma escudela de pêcegos de Alco-
baça. Tão respeitosamente se curvaram diante
dele, com tanta veneração o serviram, com
tanta gravidade lhe entregaram um papel
FREI BONIFÁCIO 223
dobrado e empastado de obreias, dizendo-lhe
que era uma carta de Sua Majestade, que o
bom do almocreve principiou a tomar a parte
a sério, a sentir-se bera no hábito, a achar
aquilo uma santa vida regalada de mimos, a
aceitar quási sem esforço a idea de que se
metera frade, a ter inclusivamente dúvidas
><M>re se o recoveiro estremenho que ele
conhecera era outro ou era ele próprio, — e
o seu estado de consciência tòrnou-se de tal
modo confuso que, quando um dos arrábidos,
perdido de riso, lhe ent regou um breviário
[•ara o coro, Bonifácio Mendes não ppude
conter-se que não dissesse:
— Vossas mercês deixem-me ir primeiro
à Azueira perguntar à minha mulher quem
eu sou. Ela conhece-me melhor do que as
pulgas da minha cama. Se eu não fôr quem
cuido, bem está; agora se ela disser que sou
eu, — com o perdão de Vossas Reverências,
já cá não volto.
Veio da estrebaria do convento a burra
do almocreve, que os frades tinham manda-
do caiar de branco, amantada e arreada de
atafais velhos, e Bonifácio Mendes, com um
alforje de franciscano e as avarcas de bezerro
às costas, lá foi, na raçada do sol, a caminho
da Azueira, entre os frouxos de riso dos
três padres. Logo que chegou, por chafur-
224 ESPADAS I ROSAS
deiros e barrocas, ao quinteiro viçoso da
casa onde morava, e viu Ana Lourença, des-
calça, carnaçuda, com o seu colete de sera-
fina encarnada e a sua saia curta de esta-
menha, apanhando da terra a bosta dos bois,
deitou-se abaixo da cavalgadura e atirou-se
aos beijos à mulher. Foi o fim do mundo. A
Lourença, que tinha o coração ao pé da boca
e era mulher de boas contas em virtude,
assim que se viu agarrada por um frade, re-
gaçou de um estadulho, foi-se a êle, deu-lhe
tanta pancada que lhe esmocou a cabeça, e
se lho não tiram das mãos ainda o acabava
com uma foice roçadoura, porque não houve
convencê-la de que era o marido.
— E' que não sou eu, — concluiu resigna-
damente o recoveiro, deitando a alforjada
às costas e arrepiando caminho para o con-
vento.
Bonifácio Mendes chegou a Mafra pela
noite, convencido de que era, de facto, o re-
verendo vigário da casa, apresentou-se ao
prelado, que o recebeu, primeiro com indi-
gnação, depois com caridade, — e, treze me-
ses andados, o pobre almocreve tomava, pe-
rante os frades compungidos, o hábito da
província da Arrábida, em cuja mortalha
veio a morrer, trinta anos depois, em cheiro
de santidade.
ÍNDICE
A «blague» de Gil Pompeia 7
O elogio dos quarenta anos 13
Como elas andam 19
O primeiro marido 25
A Catedral de Amiens 31
Uma mulher fatal 37
Ilha dos Amores 43
O paradoxo do Doutor Marcondes 49
A mulher e o cão 55
Os «vicentes» 61
Dois capacetes 67
Frank Craig 73
A arte de ser feliz 79
Augusto Rosa 85
As ideas de Fausto Aranha 91
O rato e o vitral 99
Os bárbaros 105
Madre Ana Dorotéa 111
Um pintor brasileiro 117
Psicologia da ingratidão 123
A batalha de Lavantie 129
O Bispo do Porto 135
Degenerados 141
O Paço de Mourousós 147
Uma rainha 153
O pintor do Alentejo 161
Frei Colherão 169
As quintas-feiras de El-Rei 175
História duma orelha 181
A morte de Santa Isabel 187
As noivas de Matusalêm 195
Uma paixão 201
Humour 207
A Paz 213
Frei Bonifácio 219
15
Raphael Bordallo Pinheiro
— # —
DESENHOS ESCOLHIDOS
POR
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COM UM ESTUDO DE
Manoel de Sousa Pinto
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a reprodução de noventa das melhores páginas, lito-
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carinhosamente seleccionado por seu filho Manuel
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Manoel de Sousa Pinto, sobre Bordallo e a Ca-
ricatura, ilustrado com mais de setenta curiosíssimas
reproduções e dividido nos seguintes capítulos: I. O
Fundador da dinastia. — II. Primeiras afirmações. —
III. Do «Calcanhar de Aquiles» ao «Binóculo». — IV.
Das «Bodas da aldeia» à «Lanterna mágica». — V.
Bordallo no Brasil. — VI. «O António Maria» e o
«Alb'um das Glórias». — VII. Dos «Pontos nos ii» à
«Paródia».
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